Doutor Jivago, Boris Pasternak (Sextante Editora)

   Muita gente da minha geração conhece bem Doutor Jivago, alguns porque leram o livro, a maioria porque viu o filme. Lê-lo, por isso, parecia-me uma tarefa mais fácil do que efetivamente foi. A história, contada em poucas linhas, relata a paixão arrebatadora vivida entre o doutor Jivago e Lara, enfermeira, no cenário de guerra e tendo como pano de fundo a revolução russa.
   O livro está belissimamente bem escrito e permite-nos viver e entender o quotidiano da população russa, martirizada com a guerra com o Japão, depois com o envolvimento nas duas guerras mundiais e, entretanto, a viver internamente a revolução. Se apenas um século nos separa das vidas e das histórias narradas, uma  diferença abissal nos afasta, tornando quase incompreensível aquelas vidas vividas entre frentes de guerra, hospitais, aldeias e casas destruídas, comboios e deslocações cuja duração se contava em semanas ou mesmo meses. Tudo o que havia sido construído, organizado, ordenado, tudo o que se relacionava com a existência do dia-a-dia, com o lar e a ordem humana, tudo isso foi reduzido a pó com a subversão da sociedade e a sua reconstrução.
   Pasternak terá tido, como Jivago, uma posição equidistante, embora simpatizando com a revolução na sua fase inicial, o que não lhe permitia rever-se nem aproximar-se das forças que se sucediam no poder.
   A edição que li, ostenta a indicação "Pela 1ª vez traduzido do russo" mas o tradutor podia ter ajudado mais ou pelo menos facilitado a leitura, explicitando a formação dos nomes (por exemplo, Lara aparece inicialmente como Larissa, filha de Amália Karlovna Guichard, constando depois sempre como Lara. Casa entretanto com Antipov. A dado passo é dito que Jivago encontrou-se na copa com Antipova. Larissa Fiodorovna ...é então necessário percebermos que está a falar da mesma pessoa e que essa pessoa é Lara.). Também a determinado momento se fala na NEP (Nova Política Económica) como uma fase da revolução, não havendo qualquer explicação sobre o significado da sigla.
   À parte estas questões, trata-se de uma romance com letras grandes e a finalizarmos a leitura compreendemos porque perdura no tempo.Não resisti a roubar algumas frases que demonstram a qualidade da escrita:
    "Já diversas vezes notei que são precisamente as coisas em que mal reparei durante o dia, pensamentos não levados ao esclarecimento, palavras ditas sem alma e que não mereceram atenção, que voltam à noite, em carne e osso, e se tornam o tema dos sonhos, como que a vingarem-se do desprezo que lhes havia votado durante o dia."
   E a declaração de amor a Lara:
   "Tenho ciúmes dos objectos da tua toilette, das gotas de suor na tua pele, das doenças infecciosas que pairam no ar, que podem colar-se a ti e envenenar-te o sangue. E é como de uma infecção dessas que tenho ciúmes de Komarovski, que a qualquer momento te há-de separar de mim, como um dia a minha ou a tua morte  nos há-de separar. Bem sei que tudo isto te parece um amontoado de coisas obscuras. Não consigo dizê-lo de um modo mais coerente e mais claro. Amo-te loucamente, irracionalmente, infinitamente."
    Do filme retenho essencialmente duas coisas, a música (Lara's Theme que é arrebatador) e a ideia que Jivago morria de ataque cardíaco quando avistava Lara e não conseguia sair do eléctrico a tempo de lhe falar. Será que era Lara que avistou?
   Uma palavra final para relembrar que foi este romance que levou a que fosse atribuído a Boris Pasternak o Prémio Nobel em 1958.

Comentários

  1. Imagino que a esta distância da publicação do seu artigo a pergunta se perca sem que a veja cair, mas tento: é capaz de me informar de quem é, no filme, a frase dita por um prisioneiro no comboio: "Nem todos os que riem das algemas são livres!"?. Muito obrigado.
    amarquespinto@clix.pt

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    1. No filme, a frase é dita por Jivago em diálogo com o guarda que o levava algemado na carruagem de mercadorias.

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    2. Obrigada pela resposta. Devia haver um bloqueio na receção de mensagens do blogue pelo que só agora recebemos diversas mensagens com mais de um ano. Será impossível responder a quem fez a pergunta, dado que não temos indicação de mail, mas pode ser que seja um visitante da nossa página. Muito obrigada mais uma vez.

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  2. Tentei encontrá-la no livro mas sem sucesso. Imaginei que tivesse sido dita por Strelnikov, mas mesmo procurando apenas nas partes em que ele entra, não a encontrei. Depois da leitura não revi o filme, mas tenho ideia que é uma adaptação muito livre, pelo que poderá não corresponder exatamente a uma frase do livro.














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    1. Publiquei uma resposta para si no meu próprio espaço... Cumprimentos.

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    2. ana vargasagosto 03, 2021

      Procurei no seu blogue mas não encontrei. SE quiser indicar onde posso lê-la, agradeço.

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