A irmã de Freud, Goce Smilevski (Alfaguara)

    Na contracapa do livro somos confrontados com a questão: «Terá sido Sigmund Freud responsável pela morte da irmã num campo de concentração?». Aparentemente, aquando da invasão Nazi da Áustria, Freud recebeu um visto para poder fugir para Londres, podendo nomear quem iria com ele. Freud assentou 16 nomes, que incluíam o do seu cão, mas deixou para trás as quatro irmãs que viviam na Áustria. É pela voz de Adolfine, com a qual tinha relação até próxima, que nos é contado este episódio, com algumas passagens acusatórias relativamente ao irmão:
    
   No seu sangue, onde não havia lugar para escolhas, ele era judeu. Mas onde as escolhas podiam existir, ele escolhera a cultura alemã. (...) Antes do término da sua vida, afirmou: «A minha língua é o alemã. A minha cultura e os meus êxitos são alemães. A nível intelectual considerei-me alemão até me dar conta da proliferação de preconceitos anti-semitas na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro declarar-me judeu.»

    O Sigmund foi Édipo, foi Caim e foi Noé, mas, entre os desejos que ele não queria reconhecer perante si próprio, estava o de ser um profeta, e por isso, o meu irmão usurpou Moisés aos judeus. [Sobre a obra de Freud "Moisés e a Religião Monoteísta"]

    O meu irmão partiu para Londres com aqueles cujas vidas escolhera salvar; nós, as suas irmãs, fomos deportadas, primeiro para um campo e depois para outro. Nesses momentos de sofrimento por que eu e as minhas irmãs passámos, aquelas suas palavras, sobre cada pessoa dever lutar para que haja o mínimo possível de sofrimento neste mundo, soaram-me a troça.

    O livro é um testemunho da vida desta irmã, uma vida vazia, incompleta e triste. Adolfine sofreu desde cedo o desprezo da mãe, que procurava explicar pelas suas doenças enquanto criança e, mais tarde, como bode expiatório pelo casamento do adorado irmão, que o fez sair de casa da mãe. Viveu sempre sozinha, tendo tido apenas uma paixão que, ao terminar, também tragicamente, a deixou mais vazia que nunca e com uma dor constante por não vir a ser mãe.

    O nosso único consolo neste mundo é a sua beleza. 
    (...)
    Vê só toda a beleza que há à nossa volta. É o mesmo que dizer: todo o consolo. Em contrapartida, isso equivale à mesma medida de sofrimento porque o consolo vem sempre por algum motivo.

    E, por isso, este é um livro sobre o sentido da vida, repleto de pensamentos sobre os fantasmas que, mais tarde ou mais cedo, de uma forma ou de outra, atormentam todos os seres humanos: a vida, a maternidade, a morte, a felicidade, a religião e a loucura.
    Existem passagens muito bonitas, mas são demasiadas para as transcrever aqui. De qualquer forma, é um livro duro sobre a vida, o seu sentido e as suas mágoas.

    A questão não é saber se algo da pessoa, chamemos-lhe «alma», permanecerá após a morte. A questão é: se não houver um significado mais elevado, será a nossa existência neste mundo completamente inútil?

   [O site do autor: www.gocesmilevski.com]

Comentários

  1. O livro tem por base uma história impressionante. Antes do eclodir da II Guerra Mundial, Sigmund Freud recebe um visto para sair da Áustria, rumo a Londres. Da lista que entregou às autoridades fazem parte a mulher, os filhos, o médico, a família do médico, as criadas e mesmo o cão. Na lista não incluiu as suas irmãs. Sem qualquer razão aparente, apenas o argumento que avança: Se fosse necessário vocês partirem, eu teria pensado nisso .
    Por ironia, as irmãs sobrevivem-lhe alguns meses, mas terminam por morrer, como temiam, em campos de concentração.
    O livro transmite-nos um Sigmund completamente concentrado em si próprio, com uma visão canhestra sobre as mulheres, impedindo as filhas de estudarem e de terem uma vida profissional. Nem outra coisa esperaria de quem inventou o complexo de castração.
    O livro está muito bem escrito, embora nalgumas partes se alongue demasiado, em particular na parte referente à loucura. Algumas ideias são repetidamente retomadas, como a ideia expressa por Klara Klimt: Todas as pessoas normais são normais da mesma forma, mas cada louco é louco à sua maneira. Esta ideia remete para a conhecida frase de abertura de Anna Karenina: Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
    Talvez o autor tenha querido transmitir que a infelicidade, sobretudo a vivida no quadro da família, conduz ou assemelha-se à loucura.

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