Que Importa a Fúria do Mar, Ana Margarida de Carvalho (teorema)

 
  Que Importa a Fúria do Mar contém várias histórias, personagens e épocas a acompanhar a história de fundo, que é logo narrada na contracapa:
  Numa madrugada de 1934, um maço de cartas é lançado de um comboio em andamento por um homem que deixou uma história de amor interrompida e leva uma estilha cravada no coraçao. Na carruagem, além de Joaquim, viajam os revoltosos, do golpe da Marinha Grande, feitos prisioneiros pela Polícia de Salazar, que cumprem a primeira etapa de uma viagem com destino a Cabo Verde, onde inaugurarão o campo de concentração do Tarrafal. Dessas cartas e da mulher a quem se dirigiam ouvirá falar muitos anos mais tarde Eugénia, a jornalista encarregada de entrevistar um dos últimos sobreviventes desse inferno africano e cuja vida, depois do primeiro encontro com Joaquim nunca mais será a mesma.
    E se a história de fundo é forte, todas as que se lhe entrelaçam são igualmente fortes, de pessoas de então e de agora, maltratadas, sózinhas e com farpas encravadas no rota do coração. E, por isso mesmo, a história é o que menos importa, daí que possa ser revelada quase completamente na contracapa. O que interessa neste livro é como é tecida a narrativa, apresentadas as personagens e como estas se cruzam e se ligam.
    Eugénia e Joaquim são dois seres sós, abandonados. Abandonados duplamente ambos. Ainda na infancia, Eugénia é entregue aos tios e Joaquim à avó. Nesse período vivem experiências similares de solidão. Voltam depois a ser abandonados, já adultos. Daí a cumplicidade que se estabelece entre ambos e que leva Eugenia a embarcar com Joaquim no barco, a viver com ele o período que viveu encarcerado no Tarrafal e a encontrar-se com Luisa (E é a primeira vez na narrativa que Eugénia se pode encontrar com ela, frente-a-frente). E a mudar-se praticamente para casa do Joaquim.
   Para além da riqueza da escrita, importa salientar a orignalidade das personagens que questionam o seu papel e a sua importância na narrativa e o aparecimento esporádico do narrador: E Joaquim apanha o narrador numa fase de moderado bom feitio.
    Gostei muito da utilização de frases, verbos ou citações, logo após o título de cada capítulo.     A história e as personagens são fantásticas. Custa terminar o livro, como custa virar a página no final de cada capítulo, abandonando a personagem que ocupa o espaço central.
    A escrita é preciosa, por vezes com referências literárias mas sem ser presumida ou desajustada:
    E prosseguia aquela mulher erodida por uma fome antiga, já nem sequer mulher, um ser sem sexo nem nexo, a desgovernar-se aos poucos, a queixar-se do calor que lhe avinagrava o leite, da geada que lhe enegrecia as couves, da humidade que se entranhava nos ossos, da falta de sol que lhe arruinava a hora, destes tempos, doutros tempos e ainda mais daqueles que estavam para vir.

(Sem prejuízo da qualidade gobal do livro, senti que a autora, nalguns casos, privilegiou a forma à coerência da história, o que é evidente, por exemplo, no caso da mãe de Joaquim, em que primeiro é dito que o largou e abalou para França - pag. 41 - e depois que o largou e dizem que foi parir a Lisboa - pag. 217 -).



Este romance de estreia ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela APE/ Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas - 2013, atribuido por um júri, constituído por José Correia Tavares, que presidiu, Annabela Rita, Cândido Oliveira Martins, José Manuel de Vasconcelos, Teresa Carvalho e Vergílio Alberto Vieira.

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