O segredo de Joe Gould, Joseph Mitchell (D. Quixote)

    A primeira referência que vi a este livro, O segredo de Joe Gould, foi ao prefácio de António Lobo Antunes. Foi por aí que comecei a lê-lo. É um prefácio entusiástico que começa da seguinte forma:    Este é, sem dúvida, um dos melhores livros que li nos últimos anos....Depois de o ler compreendi o entusiasmo, que me parece resultar mais da personagem tratada que do autor.
    Por partes: este livro é, como explica o autor, constituído por dois retratos da mesma pessoa, Joe Gould, escritos para um rubrica de perfis do The New Yorker, o primeiro em 1942 e o segundo, 22 anos depois, em 1964, já depois da morte dele.
    Joe Gould nasceu numa família abastada de Massachusetts e estudou em Harvard onde se licenciou em 1916.  Alguns anos mais tarde, foi viver para Nova Iorque onde termina por deixar o trabalho que tinha para se dedicar a escrever a História Oral do Nosso Tempo. Apresenta e fala do seu projeto a várias pessoas que chegam a entusiasmar-se com o mesmo, tendo alguns artigos, apresentados como excerto daquela obra monumental, sido publicados e com alguma repercussão. Obra que a dada altura, ele descreve como tendo onze vezes o tamanho da Bíblia. O título resultava do facto de, pelo menos, metade da obra ser constituída por conversas reproduzidas literalmente ou resumidas.
   Gould vivia na rua ou em asilos. Apenas temporariamente e por conta de uma mulher que quis ficar anónima, dormia num hotel. Passava fome e estava com frequência bêbedo ou de ressaca. 
    Não há da parte do autor qualquer tentativa de branquear a imagem de Joe Gould, nem sequer de o justificar ou compreender. Limita-se a apresentá-lo, sujo, a cheirar mal, com uma eterna conjuntivite, piolhos, mas por outro lado de uma clarividência desconcertante. Por vezes arrogante, outras submisso ou aldrabão. Ao mesmo tempo, cínico e ingénuo. Tem em fraca conta a maior parte dos escritores, poetas, pintores e escultores com que se cruzava e não se inibia de o dizer.
    Mais que uma pintura ou uma fotografia que nos é apresentada, é a personagem em todas as suas dimensões. Num momento seduz, no momento seguinte deita tudo abaixo. No meio faz a dança dos índios ou imita as gaivotas.
    Se a personagem justifica por si só a publicação de dois artigos no The New Yorker, o interesse nos mesmos, que justificam a edição em livro e até a a adaptação ao cinema, devem-se ao autor.  À escrita concisa, direta, desprovida de paixão mas completa de Joseph Mitchell, à forma como nos descreve o personagem e depois nos desvenda o seu segredo.
    Não resisto a transcrever uma reflexão que a dada altura faz quando desiste de escrever um livro que há muito tempo tinha na cabeça:
    Seja como for, decidi, se há coisas que a humanidade tem que chegue, que chegue e que sobre, são livros. Ao pensar nas cataratas de livros, nos niágaras de livros, nos caudalosos rios de livros, nos oceanos de livros, nas toneladas e camiões e comboios de livros que naquele momento brotavam das tipografias de todo o mundo, sendo que só pouquíssimos deles mereceriam a pena que lhes pegássemos, que os apreciássemos, já nem falo em os lermos (...)Um livro a menos a atravanca o mundo, um livro a menos a ocupar espaço, a apanhar pó e a passar, sem ser lido, das livrarias para os lares e daí para os alfarrabistas (...)

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