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O que lemos em 2020

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      Surpreendentemente, a pandemia que nos fechou em casa, e que poderia ter proporcionado mais tempo para a leitura, teve o efeito contrário. Em 2020 lemos menos livros, como se a interrupção das nossas vidas não criasse o espaço necessário para preencher com a leitura. Mas os livros que lemos compensaram-nos das viagens que não pudemos fazer, passámos do Chile à Rússia, do Canadá a França, do Egito à China, passando pela Guatemala e por outros países e continentes. Como habitualmente, os escritores que mais lemos foram os de língua portuguesa. Descobrimos novos e redescobrimos antigos autores. Os menos livros que lemos em 2020, na sua maioria, deslumbraram-nos com as histórias, com as palavras e até, nalguns casos, com os conselhos que nos davam.     E como é dito, a dada altura no extraordinário livro de Martha Batalha “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”:      Afundava a cara nos livros e se perdia em histórias. Quando levantava a cabeça achava tudo muito horrível, e sumia

A vida invisível de Eurídice Gusmão, Martha Batalha (Porto Editora)

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     O primeiro  contacto que tive com A Vida Invisível de Eurídice Gusmão foi através deste cartaz, afixado  em vários locais, no Largo de  Santos, que anunciava o filme. Mais do que a imagem foi o título que me atraiu. Passado pouco tempo encontrei, por acaso, o livro na Livraria da Travessa.     Comprei-o para oferecer (sem sequer ter tempo de o ler antes de voltar a embrulhá-lo e oferecê-lo) e a amiga que o recebeu disse-me que tinha gostado muito. Pouco tempo depois vi o filme (ver trailer ). Extraordinário. Realizado por Karim Ainouz ganhou o prémio principal da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2019. O filme não é uma mera adaptação do livro, mas a mensagem está lá. A vida invisível das mulheres. Como diz a Martha Batalha, no início:     "Mas o mais real deste livro está na vida das duas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. (...) Eurídice  e Guida foram baseadas nas vidas das minhas e das suas avós."     E ainda que não as r

As Telefones, Djaimilia Pereira de Almeida (Relógio d'Água)

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         As Telefones foi encantamento às primeiras palavras, como já tinha acontecido com o anterior livro da Djaimilia, Luanda, Lisboa, Paraíso , e se ambos partilham a geografia, as relações familiares e a escrita poética, são no resto distintos. As Telefones é a história de uma mãe e uma filha, Filomena e Solange, que vivem separadas, mas é também a despedida da mãe. A filha vive em Lisboa, primeiro com uma tia e depois sozinha, enquanto a mãe permanece em Angola. Falam por telefone, são elas próprias telefones (« Os seus telefonemas não eram palavras, mas um sonho em andamento, cujo avesso era tudo que não contavam uma à outra. ..). São ambas narradoras, alternando-se, marcando pelo estilo de letra a autoria.     A filha cresce sem saber exatamente – sem se recordar - como é a mãe, ignorando por isso como ela própria será. As transformações por que ambas passam, tornam-nas desconhecidas a cada reencontro. O reconhecimento ou a estranheza quando se encontram («Só te deixo entrar em

Memórias do Subterrâneo, Fiódor Dostoievski (Relógio d'Água)

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     Memórias do Subterrâneo está dividido em duas partes: O Subterrâneo e Por Causa da Neve Húmida. Na primeira parte, o autor apresenta-se e, na segunda, surgem as suas memórias sobre alguns acontecimentos. Uma nota do Autor, logo no início, explica-nos que tanto o autor das Memórias como as próprias Memórias são fictícias, contudo, considera que pessoas como ele devem existir na nossa sociedade, embora sejam caracteres de um passado recente. Confesso que tive alguma dificuldade no início. Alguma estranheza. A leitura da parte inicial lembrava-me nalguns aspetos O Estrangeiro , de Camus, ou A Metamorfose de Kafka e li depois que foi inspirador destas obras:    “ Agora, meus senhores, quero contar-vos, queiram ouvir ou não queiram, por que razão eu não consegui tornar-me nem sequer um inseto. Digo-vos solenemente que muitas vezes desejei tornar-me um inseto. Mas nem isso mereci .”     O autor começa por falar sobre si próprio, interrogando-se e respondendo a questões que lhe são

O Infinito num Junco, Irene Vallejo (Bertrand Editora)

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     Não me lembraria de comprar este livro se não me tivesse sido recomendado pela Livraria do Viajante. Como levo muito a sério as recomendações que lá me fazem, vim com o livro debaixo do braço, apesar de ostentar uma cinta que, entre elogios de Mario Vargas Llosa, Juan José Millás e Alberto Manguel, dizia que o livro tinha sido um fenómeno de vendas em Espanha e o livro mais lido do confinamento. Aprendi a desconfiar destes encómios e a preferir livros que já ganharam algum pó nas estantes. Mas neste caso não me arrependi.      A priori parece-me extraordinariamente arrojado escrever sobre a invenção do livro na antiguidade, mas  é fascinante ver como a autora consegue fazê-lo como se nos contasse uma história que vai interrompendo e misturando com histórias pessoais e excertos de livros de autores atuais. O Infinito num junco começa, no prólogo, com grupos de homens a cavalo a percorrer os caminhos da Grécia, o que causa desconfiança e medo nos camponeses, mas o que estes cavalei

Papá Goriot, Honoré de Balzac (Edição Amigos do Livro)

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    Lembro-me de o meu pai perguntar aos meus irmãos e a mim, se aceitaríamos matar um mandarim, já velho e sem família, residente algures na China, sem sairmos de casa. Em troca, receberíamos a sua fortuna. Este dilema era quase sempre acompanhado de novas condições, ele não só era muito velho como estava muito doente ou ninguém sentiria a sua falta porque ele era uma pessoa muito desagradável ou mesmo um criminoso. Penso que a nossa resposta foi sempre negativa. Coloquei esta mesma questão aos meus filhos que também responderam negativamente.     Pensava que este dilema tinha sido criado por Eça de Queiroz na novela justamente intitulada O Mandarim. Foi por isso com surpresa que encontrei neste romance esta mesma questão:     « [...] o que faria no caso de poder enriquecer ao matar, por sua exclusiva vontade, um velho mandarim da China sem sair de Paris? [...]     - Não brinques. Vamos se te provassem que a coisa é possível e que te bastará um gesto com a cabeça que farias?     -

Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo (Caminho)

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  O Caderno de Memórias Coloniais foi editado em 2009. Esta é a 8.ª edição (maio de 2018), o que é indiciador do interesse que suscitou. Ao lê-lo, senti o mesmo que tinha sentido quando li A Gorda,   a surpresa perante o desassombro com que a Autora fala dela própria, do corpo, dos seus desejos e sentimentos, num registo assumidamente autobiográfico. E da forma pouco habitual como fala do pai, da sexualidade paterna ( Ele sentia prazer em viver e gostava de comer, beber e foder. ..), bem como da sexualidade dos adultos, em especial das mulheres:     « Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a

Khan al-Khalili, Naguib Mahfouz (Civilização Editora)

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    Não sei há quanto tempo tinha este livro à espera de ser lido. Por vezes, entre dois livros, abria-o, folheava-o, mas voltava a pô-lo de lado.  Desta vez, mal comecei a lê-lo tive dificuldade em interromper a leitura.     O autor, Naguib Mahfouz, ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1988. Este romance, Khan al-Khalili, foi publicado muitos anos antes, em 1946, e a ação decorre em plena II Guerra Mundial, com a ameaça constante de bombardeamentos e o receio de uma invasão, quer pelos alemães, quer pelos aliados. É justamente devido ao receio dos bombardeamentos que Ahmad Akif, funcionário no Ministério do Trabalho, e seus pais decidem mudar para o bairro Khan al-Khalili. Segundo o pai, o bairro estaria protegido pela Mesquita de al-Hussein pelo que dificilmente seria bombardeado pelos alemães.     O pai aposentara-se muito novo e por essa razão, Ahmad fora forçado a abandonar os estudos e a aceitar um lugar modesto no Ministério para ajudar os pais e o irmão mais novo. Apesar de t

Trilogia Thomas Cromwell, Hilary Mantel

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     Escreveu-nos uma querida amiga acerca de uma trilogia que há muito (demasiado) aguarda a nossa leitura: a trilogia de Hilary Mantel, duplamente vencedora do Man Booker Prize. Composta pelos romances Wolf Hall (sem tradução para português), Bring Up the Bodies (O Livro Negro) e The Mirror and the Light (O Espelho e a Luz), trata-se de uma trilogia de romances históricos, centrados em Thomas Cromwell, aquele que veio a ser o principal conselheiro de Henrique VIII, durante o seu reinado.       É isto que a Lucinda tem a dizer, após concluir a leitura:      Acabei de ler a trilogia Wolf Hall, da Hillary Mantel, gostei muitíssimo e aprendi muitíssimo também [...].  Como bem dizes, Ana, escrever uma recensão não é tarefa fácil. Que te dizer da trilogia? Que a autora nos faz vibrar com pessoas que viveram há quinhentos anos, cujas alegrias, aflições, ambições e desalentos se tornam palpáveis para o leitor. O narrador é, praticamente sempre, Thomas Cromwell, figura que a história apresent

Princípio de Karenina, Afonso Cruz (Companhia das Letras)

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        Soube-me muito bem ler esta novela, Princípio de Karenina. Um livro simultaneamente leve e difícil. Em muitos momentos, poesia em forma de prosa:     « Havia breves e raros momentos em que a nossa casa sorria, quando de manhã a criada da Mealhada abria as janelas, para arejar a casa, e as cortinas esvoaçavam. Ou quando eu me reclinava nos acordes, como se fossem divãs, que a minha mãe tocava ao piano . [...]     Todas as noites, a minha mãe, ao inclinar-se sobre mim, parecia despedir-se. Acho que ela sentia mesmo isso, que por cada dia que passava havia uma parte de mim ou dela que ia embora.»     Conforme explica no final, este livro nasceu de uma viagem ao Camboja e ao Vietname, organizada pelo Centro Nacional de Cultura, em 2017, cujo objetivo seria encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo, em lugares tão distantes como a Conchinchina. Conchinchina foi o nome dado pelos portugueses a uma região situada no sul do atual Vietname, na Indochina, mas é também, entre n

Neve, Orhan Pamuk (Editorial Presença)

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    Demorei muito tempo a ler este romance, Neve, de Orhan Pamuk. É um livro lento, detalhado e tão compacto que nos obriga a ler devagar.         Ka, um poeta turco, a residir na Alemanha, vai a Istambul para o enterro da mãe e depois a Kars, cidade situada no extremo nordeste da Turquia, para cobrir as eleições e talvez escrever um artigo a propósito das raparigas sucidárias. Quanto a estas raparigas, a dada altura é dito a Ka:      "É verdade que a causa dos suicídios reside na extrema infelicidade das nossas raparigas, disso não há qualquer dúvida. (...) Mas se a infelicidade fosse uma verdadeira causa de suicídio, metade das mulheres da Turquia ter-se-iam suicidad o."    São várias as histórias e as razões para estas jovens se suicidarem, mas o que mais o horroriza é a tranquilidade com que são encarados os suicídios [“… a maneira   como as suicidas se inseriam tão espontaneamente na banal vida quotidiana, sem aviso, sem cerimoniais .(…) o facto de as jovens terem se

A Letra Encarnada, Nathaniel Hawthorne

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    Há algum tempo que andava curiosa por ler este livro, essencialmente porque é considerado «o» romance clássico americano, frequentemente mencionado e retratado em filmes e séries americanas, apesar de pouco falado por estes lados.     Não resisti quando o vi à venda e percebi ser uma tradução de Fernando Pessoa, e foi o livro que li durante a minha semana de férias.     É um romance claramente datado, abordando uma realidade de há alguns séculos que, atualmente, já pouco se verifica (infelizmente, ainda não totalmente abolida). O tema do romance é o adultério. Em Boston, ainda no século XVII, Hester Prynne é acusada de adultério, depois de dar à luz uma menina, estando o seu marido desaparecido há alguns anos. Como consequência, é obrigada, após uma estada na prisão, onde a menina nasceu, a ficar de pé perante a comunidade, com a letra «A» bordada ao peito, letra essa que deverá usar para o resto da vida, como penitência pelo seu pecado. Enquanto ali se encontra, o pároco pede-lhe