Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, Richard Zimler (D. Quixote)

    Quando peguei no livro e o comecei a folhear, indecisa se o iria comprar, a minha irmã disse-me que eu tinha de o ler. Segundo ela, mal iniciasse a leitura, iria ter dificuldade em interrompê-la.
    De facto, trata-se de um livro que nos prende logo nas primeiras páginas, em que acompanhamos a infância ainda protegida de John Zarco Stewart, na cidade do Porto, no início do século XIX. John é filho de um escocês e de uma judia portuguesa, mas só descobrirá esta parte da sua herança através do confronto público feito por um antigo inquisidor, apostado em fazer regressar a Inquisição, com o apoio discreto da Igreja.
    A amizade com Daniel e Violeta, crianças sem a mesma protecção familiar, vai forçá-lo a confrontar-se muito novo com a morte (suicídio) e a violência exercida sobre as crianças/mulheres.
    Só consegue sair da prostração em que caiu com o auxílio de Meia-Noite, um boxímane com que o pai se fez acompanhar de uma viagem à África do Sul. A amizade entre os dois e a integração de Meia-Noite na família e no seio dos amigos é feita de magia africana, de respeito mútuo e de grande curiosidade pelas outras culturas, designadamente a judaica, o que faz com que ambos, simultaneamente, vão conhecendo os seus contornos e história.
    Na sequência de uma viagem a Londres, o pai anuncia à família que Meia-Noite foi morto e a harmonia familiar desfaz-se, cada um chorando a dor e o ressentimento de forma isolada. Só mais tarde, anos depois da morte do pai e já viúvo, John saberá toda a verdade, o que o fará iniciar um périplo que o levará à América do Norte onde reencontrará Violeta e, finalmente, Meia-Noite.

    Há passagens lindíssimas no livro, e não resisti a roubar algumas sobre o seu curto casamento, a morte, e a tortura a que eram sujeitos os escravos:

   Como quem estiver casado há muito tempo pode confirmar, é essencial que uma pessoa se adapte às mudanças do ser amado de tantos em tantos anos e, se quiserem, concordar silenciosamente em voltar a casar com ele.

   Não havia canções de amor suficientemente poderosas para derrotar a morte. Todas as coisas mais importantes estavam fora do nosso controlo.

   Naquele momento antes do chicote te rasgar a esperança, pensas que tens força para o desafiar. Pensas que a tua raiva justa é tão dura como uma rocha e que te vai tornar invencível. E pensas que não és o teu corpo. Não, o tu que é importante está bem dentro de ti, onde ninguém pode chegar. Mas o que esqueces é que mesmo a maior muralha de determinação se desfaz em pó quando lhe batem o suficiente. Não, tu estás mesmo ali, à superfície, onde a tua pele está a ser arrancada em tiras que queimam. Não és nada senão a própria dor e odeia-la mais do que odeias o homem branco que te está a chicotear.


***

Comentários

  1. Este livro é o livro da minha vida! Lindo! Único! Inesquecível! Recomendo-o sempre!

    Paula Fernandes

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  2. Acabei agora de ler o livro. Não tenho nada a acrescentar ao post que foi feito, querendo apenas sublinhar que é um livro lindíssimo e muito bem escrito, sobre amor, perda e intolerância, que comoveu diversas vezes. É um livro cheio de dor e de remorsos e de uma busca incessante por qualquer coisa de melhor. Gostei muito e aconselho a leitura.

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