A Promessa, Damon Galgut (Relógio d'Água)
Estava naquele espaço intermédio em que
acabamos um livro e ainda não começámos a ler um novo, ou melhor, ainda não
ficámos reféns de nenhum, por isso vamos lendo umas páginas de um que depois
interrompemos, pegamos noutro que folheamos e abandonamos… Não é fácil começar
um livro depois de outro de que gostámos. Temos de dar tempo para nos
despedirmos das personagens e deixar acomodar as histórias que nos contaram.
Mas há alguns livros que nos fazem esquecer rapidamente o anterior, e A
Promessa é um desses livros. O meu irmão ofereceu-mo e disse que o tinha lido e
que eu iria gostar de o ler. E assim foi, comecei a lê-lo e foi paixão às
primeiras palavras.
Na contracapa é dito que «obcecados, perseguidos e assombrados por uma promessa não cumprida, os membros da família Swart dispersam-se depois da morte da matriarca». Não senti que assim fosse. Apenas a filha mais nova se sente obcecada pela promessa que a mãe faz antes de morrer. Sobrevivem-lhe o marido e os três filhos, cujos nomes começam todos por A - Anton, Astrid e Amor – que se vão reencontrando na fazenda de que a família é proprietária, nos arredores de Pretória, ao longo de cerca de quarenta anos, para quatro funerais. A Promessa tem 4 capítulos - Mamã, Papá, Astrid e Anton – e entre cada um passam vários anos, nos quais se assiste à inevitável mudança das pessoas e às alterações do país.
Em cada reencontro, Amor, a mais nova, relembra a promessa feita pela mãe, de oferecer a casa a Salomé, a velha criada negra [quando Anton fala nisso à então namorada, ela manifesta-se contra, argumentando que vai dar cabo dela, não se percebendo se fala de Salomé ou da casa (pg. 58)]. De Salomé sabemos muito pouco. Sabemos que tratou da mãe deles até à morte, que trabalha diariamente na casa, que tem um filho e que vive numa casa que lhe foi prometida. Praticamente não fala, a não ser para dizer que tem o contacto de Amor e lhe telefonar. De resto, é uma presença constante e muda. Logo depois da morte da mãe, Amor anuncia a Lukas, filho de Salomé, que a casa será deles, mas ele não percebe. Afinal nasceu ali, cresceu ali, dorme ali, portanto considera sua a casa e, apesar da generosidade de Amor, é esta sua afirmação que o leva a percecionar o abismo entre ambos. Brancos e negros. E quando isto acontece ainda vigora o apartheid e seria ilegal darem a casa a Salomé (Será que não fazes a mínima ideia do país em que vives? pergunta Anton à irmã.)
Enquanto isto, o país vai mudando e as pequenas referências feitas permitem-nos recordar momentos chave da história de África do Sul, a revolta do Soweto, a libertação e a posterior eleição de Nelson Mandela, a final do Campeonato do Mundo de Râguebi entre a África do Sul e a França, a renúncia do Presidente Zuma e a eleição de Mbeki. Mas como diz Anton, quando visita o pai no hospital e o encontra numa enfermaria ao lado de um homem negro:
Na contracapa é dito que «obcecados, perseguidos e assombrados por uma promessa não cumprida, os membros da família Swart dispersam-se depois da morte da matriarca». Não senti que assim fosse. Apenas a filha mais nova se sente obcecada pela promessa que a mãe faz antes de morrer. Sobrevivem-lhe o marido e os três filhos, cujos nomes começam todos por A - Anton, Astrid e Amor – que se vão reencontrando na fazenda de que a família é proprietária, nos arredores de Pretória, ao longo de cerca de quarenta anos, para quatro funerais. A Promessa tem 4 capítulos - Mamã, Papá, Astrid e Anton – e entre cada um passam vários anos, nos quais se assiste à inevitável mudança das pessoas e às alterações do país.
Em cada reencontro, Amor, a mais nova, relembra a promessa feita pela mãe, de oferecer a casa a Salomé, a velha criada negra [quando Anton fala nisso à então namorada, ela manifesta-se contra, argumentando que vai dar cabo dela, não se percebendo se fala de Salomé ou da casa (pg. 58)]. De Salomé sabemos muito pouco. Sabemos que tratou da mãe deles até à morte, que trabalha diariamente na casa, que tem um filho e que vive numa casa que lhe foi prometida. Praticamente não fala, a não ser para dizer que tem o contacto de Amor e lhe telefonar. De resto, é uma presença constante e muda. Logo depois da morte da mãe, Amor anuncia a Lukas, filho de Salomé, que a casa será deles, mas ele não percebe. Afinal nasceu ali, cresceu ali, dorme ali, portanto considera sua a casa e, apesar da generosidade de Amor, é esta sua afirmação que o leva a percecionar o abismo entre ambos. Brancos e negros. E quando isto acontece ainda vigora o apartheid e seria ilegal darem a casa a Salomé (Será que não fazes a mínima ideia do país em que vives? pergunta Anton à irmã.)
Enquanto isto, o país vai mudando e as pequenas referências feitas permitem-nos recordar momentos chave da história de África do Sul, a revolta do Soweto, a libertação e a posterior eleição de Nelson Mandela, a final do Campeonato do Mundo de Râguebi entre a África do Sul e a França, a renúncia do Presidente Zuma e a eleição de Mbeki. Mas como diz Anton, quando visita o pai no hospital e o encontra numa enfermaria ao lado de um homem negro:
«O apartheid acabou, vêem, agora morremos uns ao lado dos outros, numa
proximidade íntima. É só a parte de vivemos juntos que ainda temos de
resolver.» (pg.99)
Apesar do título e da constante lembrança da promessa feita pela mãe de dar a casa a Salomé, a velha criada negra, penso que este livro fala sobretudo de uma geração perdida na África do Sul. A geração que assistiu ao fim do apartheid, que nasceu e cresceu num país em profunda mutação, que procura o seu lugar e cujas expetativas são goradas. Promessas por cumprir.
Com A Promessa, Damon Galgut venceu o Man Booker Prize de 2021. À história da família Swart e do país, soma-se a mestria na forma como o autor escreve, circulando sistematicamente entre a narração e o discurso direto, como uma escrita de teatro ou de cinema, como se mudássemos o olhar consoante a voz que fala. Corrige-se também, de forma sistemática, alterando o ambiente, o enquadramento ou as horas [«São só sete da tarde. Correção, oito e vinte.» (pg. 223)] nalguns casos sem que se perceba as consequências da correção. Como um recurso estilístico apenas, colocando o leitor perante um texto ainda em construção. Mas quando damos pela correção, revemos a imagem que se tinha formado na nossa cabeça. E Damon Galgut é um mestre no recurso às imagens. Não posso deixar de copiar a descrição da velha Tia Marina:
«Passa algum tempo com a Tia Marina, ou o que resta dela, metade derretida e a transbordar da cadeira de rodas, como uma vela já muito usada num pratinho.» (pg. 212)
Um livro a não perder.
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