A palavra que resta, Stênio Gardel, (D. Quixote)

 

   Porque decidimos ler um livro? Podemos passar por uma livraria e apaixonarmo-nos pela capa ou pelo título ou pelo resumo que está na contracapa. Podemos decidir lê-lo porque já lemos outros livros do mesmo autor ou porque lemos uma crítica ou alguém nos falou dele ou ainda porque alguém no-lo oferece.

   Foi o caso deste livro, A palavra que resta. Provavelmente se não mo tivessem oferecido não o teria descoberto e teria perdido a leitura deste livro extraordinário, que sendo sobre as pessoas excluídas, discriminadas por serem homossexuais, transsexuais ou travestis, é, na realidade, sobre a importância de aprendermos, seja a ler, seja a ver o mundo de outra maneira.

    É um livro lindíssimo e ao mesmo tempo doloroso. Está dividido em quatro partes e cada parte em pequenos capítulos. Conta a história de amor entre Raimundo e Cícero, dois jovens que se conheciam desde meninos. De Raimundo sabemos o nome completo: Raimundo Gaudêncio de Freitas. De Cícero apenas sabemos o nome próprio. Ao contrário de Cícero, Raimundo não pôde estudar porque o “pai lhe dizia que a letra era pra menino que não precisava encher o próprio prato.” (pg. 13)

    Quando os pais dos dois jovens descobrem o que existe entre eles, agridem-nos brutalmente, mas como explica o pai de Raimundo, é para o tirar do caminho da morte, o que só mais tarde o filho compreenderá. A mãe não o aceita e diz-lhe que ele se deve ir embora de casa. “A voz que afaga, a voz que afoga.”

    Os dois não têm sequer oportunidade de se despedir. Cícero não aparece no encontro que tinha combinado com Raimundo:

    “Foi ele que marcou e não apareceu, me deixou o dia todinho aqui, velando essa cruz, o monte de futuro que a pessoa consegue pensar num dia, adiantou de nada, o dia todo feito besta, ele me faz passar uma dessa, o que eu tinha feito a ele? Porque ele não veio?” (pg. 69)

    Mas Cícero deixa-lhe uma carta e 52 anos depois Raimundo vai aprender a ler para poder ler a carta que guardou, escondida numa caixa de sapatos debaixo da cama.

    Depois de sair de casa dos pais, de trabalhar a carregar e a descarregar camionetes, escondendo a sua homossexualidade, Raimundo conhece Suzzanný, e terminam por viver juntos:

    “Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar, um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola…” (pg. 111)

     A escrita é belíssima, com recurso frequente apalavras inventadas:

   “O sol começava a se despendurar do meio do dia.” (pg. 19)

     “E essa mania de desafundar memória velha?” (pg. 28)

    Com A palavra que resta, Stênio Gardel recebeu o National Book Award (para obra traduzida), inédito no caso de um romance de língua portuguesa, e no discurso de agradecimento disse:

    Crescendo como um menino gay no interior do nordeste do Brasil, era impossível para mim sonhar com uma honra como esta. Mas estando aqui esta noite, recebendo este prémio por um romance sobre a jornada de outro homem gay até sua auto-aceitação, eu quero dizer a todas as pessoas que já se sentiram erradas em relação a si mesmas que seu coração e seu desejo são verdadeiros e vocês são tão merecedores, como todo mundo, de ter uma vida realizada e alcançar sonhos impossíveis.”

    A história sofrida de Raimundo (e de Cícero e Suzzanný) só poderia ser tão belissimamente (d)escrita por quem a viveu e sofreu.  


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