O caderno proibido, Alba de Céspedes (Alfaguara)
Mais um livro que recebi no final do ano passado, entre o Natal e o meu aniversário, e que permaneceu até há dias empilhado entre outros livros na secretária que herdei da minha mãe. Não os vou lendo pela ordem porque estão empilhados, mas muitas vezes começo a ler um livro apenas porque é o que está no topo. Mas O caderno proibido era o livro do mês de novembro do Clube de Leitura da Almedina, dinamizado pelo Paulo Faria, e foi o pretexto para o começar a ler. E quando começamos a ler O caderno proibido, difícil é parar ou interromper, ainda que por breves momentos, a leitura.
Descubro depois que foi publicado em 1952 e redescoberto recentemente, já após a morte da sua autora, Alba de Céspedes, em 1997. Um pouco como Stoner, de John Williams, publicado em 1965 e resgatado do esquecimento volvidos cerca de 50 anos, sendo então traduzido para francês e depois para outras línguas. E nestes dois casos interrogo-me sobre o que faz um bom livro? O que faz um livro sobreviver 60 anos e ser redescoberto e lido com tanto interesse por tantos leitores?
O caderno proibido inicia-se com a compra do caderno por Valeria, num domingo de manhã, quando sai para comprar cigarros para o marido, Michelle. O vendedor explica-lhe que ao domingo só podia vender cigarros, mas termina por aceitar vender-lho, indicando que o escondesse debaixo do casaco. Quando chega a casa, Valeria é imediatamente chamada pelos filhos, enquanto procura um sítio para esconder o caderno: «Pensava que já não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um recanto que ainda fosse meu.» (pg. 11).
Valeria - de apelido Cossati - é casada com Michelle, que trabalha num banco, e aguarda uma promoção, embora alimente outros sonhos. Os filhos, Riccardo e Mirella, são ambos estudantes universitários. Apesar de os pais trabalharem, a família sobrevive com dificuldade, marcando a diferença relativamente à situação que Valeria havia conhecido na infância e juventude. Itália vive então as consequências da II Guerra Mundial e da derrota sofrida, e que é agravada pelo receio de uma guerra iminente.
Em pouco mais de 6 meses, entre 26 de novembro de 1950 e 27 de maio do ano seguinte, Valeria escreve o diário, contando o seu dia a dia, e percebe-se que o diário tem um efeito transformador nela própria. Como se fosse um espelho que lhe devolvesse uma imagem dela própria e da sua família, que ela ainda não percecionara. Por outro lado, a posse do caderno leva-a a procurar um espaço e um tempo só dela:
"Nem agora, sozinha com o caderno, sou capaz de compreender: este caderno, com as suas páginas brancas, atrai-me e ao mesmo tempo assusta-me, como a rua. (...) O facto de só a esta hora conseguir ficar sozinha para escrever faz-me perceber que, agora, pela primeira vez em vinte e três anos de casada, dedico algum tempo a mim mesma." (pg. 69)
Valeria, apesar de se revelar profundamente conservadora no que concerne a vida da filha, tem a noção de que pertence a uma geração de charneira, entre a sua mãe e a filha:
"(...) pertencem a dois mundos diferentes: um que acabou com aquele tempo, o outro que nasceu dele. E em mim esses dois mundos colidem, fazendo-me gemer. Talvez seja por isso que muitas vezes me sino desprovida de qualquer consistência. Talvez eu seja apenas essa passagem, esse embate." (pg. 281).
Percebe também quão distante está do marido, e da forma como a vê e compreende que ele nunca a percebeu bem, mesmo quando namoravam e se escreviam, porque ele estava na guerra:
"Ele continua a dirigir-se a mim através de uma imagem que já não me reflecte. Nada do que aconteceu nestes anos arranhou essa imagem: talvez porque nunca mais falámos como quando namorávamos, só de nós, daquilo que acontecia no nosso íntimo." (pg. 94)
O caderno obriga-a a uma reflexão e a uma introspeção que, provavelmente, se não o escrevesse, não faria:
"Se calhar é preciso ser quase velha e ter filhos crescidos, como eu tenho, para compreender os próprios pais, e, espelhando-nos neles, compreender um pouco mais sobre nós próprios (...) Até agora, por causa da nossa forma de conversar, parecia-me que nunca nos tínhamos compreendido." (pg.57)
"Se calhar as mulher habituam-se mais depressa às situações novas, pensam menos, em geral, e por isso aceitam-nas sem as justificarem." (pg. 79)
E é uma mulher diferente que escreve pela última vez o caderno proibido, não só pela forma como se vê a ela própria, mas também pela forma como vê os outros:
"À noite, quando nos sentamos todos juntos à mesa, parecemos claros e leais, sem insídias; mas sei agora que nenhum de nós se mostra como verdadeiramente é, escondemo-nos, camuflamo-nos todos, por pudor ou por despeito."
Decide queimar o caderno, porque não quer que o descubram, em particular a mulher do filho, Marina. " (...) Todas as mulheres escondem um caderno negro, um diário proibido. E todas têm de o destruir."
E pergunta onde terá sido mais sincera, se no que escreveu, se nas suas ações. O fim do caderno será, provavelmente, o seu momento de resignação à vida que levava, brevemente interrompida pela escrita do caderno.
Enquanto lia, as imagens que se formavam na minha cabeça, eram as das ruas de Nápoles quando vimos no filme de Paola Cortellesi, Ainda temos o amanhã. Valeria podia morar na rua em frente.
Não conheço mais livros de Alba de Céspede mas fiquei curiosa com o que li sobre ela: foi jornalista, autora de romances, crónicas e do guião de As Amigas, de Antonioni. Espero que outras obras de Alba de Céspede (que tinha dupla nacionalidade, italiana e cubana, e era neta de Carlos Manuel de Céspedes que proclamou a independência de Cuba em 1868 e pôs fim à escravatura no país) sejam agora traduzidas para português.
O caderno proibido já tinha sido traduzido para português e publicado em Portugal em 1972. Desconheço se terá tido sucesso então. Foi agora traduzido por Ana Cláudia Santos.

Comentários
Enviar um comentário