O Outro Eu, Daphne du Maurier (Relógio d'Água)
É curioso como as coisas se dão. Li Rebeca da Daphne du Maurier já lá vão
dez anos ou mais, pela coleção Livros do Brasil. Desde essa altura que tenho
sublinhado na contra capa o título da mesma autora, O Outro Eu. Faz um mês vi
um filme (Scapegoat) por acaso e vi, com surpresa, que era baseado num romance
de du Maurier. Imediatamente, pela história, mesmo sem saber a tradução do
título para português, percebi que tinha de ser o romance que há tantos anos
assinalara para ler. Pois esse romance foi recentemente retraduzido e editado
pela Relógio d’Água e li-o de um trago só. As diferenças são significativas,
entre o filme e o romance e, como de costume, o romance ganha. Mas o filme
também é muito giro.
John, o narrador, é um inglês desiludido com a vida, de férias em França,
cuja língua e costumes o fascinam. Para fim de viagem, tencionava passar uns
dias na abadia Grande-Trappe, quando, a caminho, é confrontado com um sósia, de
nome Jean. «Foi uma estranha e repentina
sensação, ao mesmo tempo de medo e de repulsa», e Jean de Gué, conde de St.
Gilles, leva John a jantar e beber. Falam um pouco das suas vidas, tão
distintas uma da outra, mas tão angustiantes para cada um deles. E, no dia
seguinte, John acorda no quarto reservado por Jean, despojado dos seus
pertences, e com o motorista do conde a bater-lhe à porta do quarto para o
levar para o Chateau. Sem saber o que fazer, John acaba por escolher tomar a
identidade de Jean e ver como a família do conde reagiria à sua presença. A sua
surpresa é tanto maior quando percebe que nem aqueles que viviam tão próximos de
Jean têm a capacidade de assimilar a troca.
«Não havia o direito de brincar com a
vida das pessoas. (…) Jean de Gué procedera mal. Fugira da sua vida quotidiana,
esquivara-se aos sentimentos que ele próprio havia provocado. Sem a sua ação
sobre eles, nenhum desses membros da família teria agido como agira, nessa
noite. (…) Jean de Gué fracassara. Ainda era mais falhado do que eu (…).
Compreendi que ele não regressaria mais. (…) Podia fazer o que quisesse, sair
daquela casa ou ficar.»
Ao assumir-se como Jean, John precisa então de decidir quem quer ser dali
para a frente.
«Nenhum espião em serviço neste país
dispunha de tão perfeito disfarce, de tão bela oportunidade para experimentar a
fraqueza dos outros – se tal fosse o seu propósito. Qual era o meu? Ontem,
conciliar. Hoje, divertir-me. E não havia razão para que os dois se mostrassem
incompatíveis.»
Lutando entre as duas personalidades – a de Jean, para não ser descoberto,
e a sua, para manter as suas noções de moral – John vai tomando decisões que
alterarão definitivamente o percurso da família infeliz e dividida de Jean,
pela qual desenvolve um grande carinho.
«- Quero que sejam felizes (…). Não a
felicidade como De Gué a concebe, mas a que está encerrada dentro deles e que
eu descobri. (…) Ele é um demónio.
- Nesse ponto enganas-te. (…) Não é
um demónio. É um homem como os outros, como tu. (…) Se fosse um demónio, (…) há
muito que o teria deixado.»
É um livro muito bem escrito e que explora o eu idade na sua forma mais crua.
***
Quero ler este livro!
Um documentário fascinante sobre a vida e obra, e a vida por trás da obra, de Daphne du Maurier, apresentado pela RTP2, no passado dia 2 de abril. A não perder.
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