Fahrenheit 451, Ray Bradbury (Saída de emergência)

Ray Bradbury @ Clube de Leituras
  É raro ler livros de ficção científica. Não por qualquer preconceito relativamente a este tipo de livros, até porque sou uma aficcionada de livros policiais, considerado por muitos também um género menor de literatura, mas porque, em regra, não aprecio o ambiente em que decorrem. 
  Comecei, contudo, a encontrar referências a este livro, Fahrenheit 451, em referências feitas noutros livros ou por pessoas que o tinham lido e, ainda, na designação de uma revista brasileira sobre livros, que adotou o nome do livro, Fahrenheit 451.
    Provavelmente tudo o que direi sobre o livro já foi dito e lido, a começar pelo título: Fahrenheit 451, corresponde a 233o Celsius, e é a temperatura a que ardem os livros. Guy Montag, o protagonista, é bombeiro e o seu trabalho é queimar livros - todos os livros -, as casas onde se encontram e até, se se recusarem a sair, os respetivos habitantes. O livro começa desta forma:
    «Era um prazer pôr fogo às coisas. Era um prazer especial vê-las a serem devoradas, enegrecidas e transformadas.»
    Um dia, quando regressa a casa, encontra uma rapariga, que mora na vizinhança, Clarisse Mc Clellan, que lhe faz várias perguntas («Alguma vez leu os livros que queimou?» ou «É feliz?») e diz coisas que o surpreendem. Quando chega a casa a mulher tinha tomado vários comprimidos para dormir e ele teve que chamar o serviço de urgência. São estes dois eventos que o levam a questionar tudo, começando desde logo por esconder um livro que deveria queimar.
    
    Costumo ler o prefácio depois de ler o livro, eventualmente antes do posfácio, se o tiver. Foi por isso com surpresa que li no prefácio, de Jaime Nogueira Pinto, que Fahrenheit 451 foi editado pela primeira vez nos EUA, em 1953, e quando saiu,  foi lido como um manifesto contra a censura, como um panfleto contra todas as inquisições.  Na leitura do livro, o que me surpreendeu mais, porém, foi a ausência de poder instituído. Não há menção a governo ou a sistema político, mas apenas um sistema que é quase unanimemente aceite e por isso muito mais perigoso. Há também menção a uma guerra iminente que, até eclodir, é praticamente ignorada. Em termos de clarividência ou de antecipação do futuro,  não deixa de impressionar o papel que ele reserva à televisão e aos programas de entretenimento, anestesiando os espetadores que confundem o que vêem com a vida real. E o contraponto é dado pelos livros, pelo poder que exercem sobre as pessoas, e pelas pessoas que incorporam livros:
    «Vagabundos por fora, bibliotecas por dentro. Não foi algo planificado rigorosamente. Cada homem tinha um livro que queria memorizar e fê-lo. Depois, durante um período de mais ou menos vinte anos, fomo-nos encontrando nas nossas viagens e a rede de contactos foi-se formando aos poucos, até pensarmos na solução. A coisa mais importante que tivemos de enfiar nas nossas cabeças foi que nós não éramos importantes, e que não devíamos ser pedantes, não devíamos sentir-nos superiores a ninguém. Não passamos de sobrecapas de livros, sem outra particular importância. (...) Mas é isso que a humanidade tem de maravilhoso: por mais desencorajantes e terríveis que sejam as circunstâncias, nunca deixa de voltar a tentar, porque sabe que há coisas que são importantes e merecedoras do risco da tentativa.»

    Uma nota final, tendo o autor desta obra a capacidade de, nalguns aspetos, antecipar o futuro, não deixa de surpreender que retrate a família como ela era nos anos 50, nos EUA, e não preveja que a mulher tenha no futuro um papel distinto daquele que tinha então. A mulher de Guy Montag é doméstica, passa a vida a ver televisão e toma medicamentos para dormir, bem como as amigas. No que se diferenciam das mulheres daquela época, é no número de divórcios/casamentos e na decisão de não terem filhos. Entre os vagabundos que memorizam livros não há mulheres, como também não são mencionados livros escritos por mulheres. Um livro quase todo masculino em que apenas se diferencia o papel de Clarisse McClellan.

***

Comentários

  1. Curiosamente, no livro O Zen e a Arte da Escrita, Ray Bradbury fala da adaptação ao cinema desta obra e do quase desaparecimento de Clarisse o que originou muitos protestos de leitores. François Truffaut quis saber o mesmo e, no filme que fez, salvou Clarisse do esquecimento, juntando-a aos homens-livros que andam pela floresta a recitar para consigo os livros que memorizaram.

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  2. N' uma História da Leitura, Alberto Manguel conta que um professor de alemão insistiu que ele decorasse poemas porque lhe fariam companhia no dia em que não tivesse livros para ler. E contou-lhe que o pai dele, assassinado em Sachsenhausen, fora um erudito célebre que conhecia de cor muitos clássicos e que, durante o seu tempo no campo de concentração, se oferecera aos companheiros de cativeiro como biblioteca.
    Anos mais tarde, Manguel deu-se conta que ele fora imortalizado como um dos nómadas que sabem livros de cor em Fahrenheit 451.

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