Mil Novecentos e Setenta e Cinco, Tiago Patrício (Gradiva)

Tiago Patrício @ Clube de Leituras
    Primeiro livro que li deste autor, de que ainda não tinha ouvido falar, tendo por isso ficado surpreendida por descobrir na badana que já recebeu (venceu, como é ali referido) diversos prémios. O título, Mil Novecentos e Setenta e Cinco, não nos remete apenas para um qualquer período temporal definido, envia-nos diretamente para uma época agitada no nosso país que se seguiu à revolução do 25 de abril. Para uns será uma viagem a um tempo que não conheceram, para outros um regresso ao passado.
    O livro inicia-se com o ano novo e acaba com o “findano”. Horácio regressa à aldeia de Trás os Montes, onde nasceu porque recebeu uma carta da tia a informá-lo que a avó estaria muito doente. E é esse o ponto de partida, o regresso de Horácio, a que se hão-de seguir outros regressos ou chegadas à aldeia, que se encontra espartilhada entre os muito ricos e os pobres.
    A descrição das personagens é tão perfeita que nos permite imaginá-las, sentadas à entrada de suas casas ou a matar um porco ou a lavar a roupa no rio. Mas tratando-se de uma obra ficcional é, simultaneamente, uma obra realista, porque tudo o que é contado pode ter acontecido, se não ali, logo ao lado, se não daquela forma, de outra muito parecida. Para esta noção de verosimilhança contribuem os diálogos, curtos e vivíssimos.
    Embora seja o retrato de uma aldeia transmontana é, de alguma forma, uma metáfora para a situação que o país viveu nesse já longínquo ano de 1975 e para os anos que se seguiram. Como se tivesse sido um sobressalto, a ideia que se podia mudar tudo, reverter o que até aí era a ordem estabelecida, e depois, lentamente tudo tivesse voltado não ao que era, mas a uma realidade intermédia.
    A imagem perfeita da mudança é o facto de as pessoas terem deixado de morrer:
    « - Bons tempos, em que as pessoas ficavam doentes e dali a um par de meses morriam. Agora não, é uma desgraça.
     »Lamentou a mulher.
   » - Estou em crer que é uma coisa passageira. Vivemos um tempo de indefinição, é normal que ninguém queira morrer sem saber como é que isto acaba»

    O Coveiro, vítima desta ausência de mortos, é uma personagem fascinante. 

    «(…) Gostava de falar sozinho, ajudava-o a aclarar os pensamentos, porque uma coisa eram as suas ideias, muitas e variadas, e outra era aquilo que ele camava “saber o que se diz”. Para isso tinha de testar as ideias através das palavras, o que é diferente de deixá-las andar às escuras a saltar dentro da cabeça como macacos nas árvores. Tinha duas maneiras de fazer isso: escrever o que pensava ou repetir os pensamentos em voz alta.»

   As personagens femininas, embora presentes são quase sempre secundárias, com exceção de Fernanda, amiga de Gabriel, que vai com ele passar férias à aldeia em agosto e que, deslumbrada, conhece a aldeia e os seus habitantes, dando-nos um olhar externo sobre o que se vai passando.
    O livro tem um mérito inegável que é o de contar diversos episódios que se sucedem naquele ano sem nunca cair no maniqueísmo fácil de justificar uns e culpar outros. Senti, contudo, ao longo da leitura, que muitas histórias ficaram por contar ou mereciam ser mais contadas.

***


Comentários

  1. Eu também fiquei com a mesma sensação quando acabei de o ler, embora no meu caso seja mais fácil imaginar tudo o que aqui é relatado. Mas há tantas histórias pelo meio, que mereciam mais páginas. Não é só o não morrer, mas também o coveiro escritor, os bonecos a fazerem de pessoas....
    Tantas...

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