Um bom homem é difícil de encontrar e outras histórias, Flannery O'Connor (Relógio D' Água)

Flannery O'Connor @ Clube de Leituras
    Um Bom Homem é Difícil de Encontrar e outras histórias é um livro extraordinário. Apesar de ser o primeiro conto que dá o título ao livro, termina por ser o mote para este e para os restantes contos. As personagens principais são más, mesquinhas, ridículas ou patéticas. Apenas as personagens secundárias, cujos contorno são muito esbatidos, poderão, eventualmente, fugir a estes predicados.
    As histórias decorrem no sul dos EUA, local onde a autora viveu e nasceu, e que parece ser o cenário ideal para estes contos. A primeira história apanha-nos de surpresa, embora o título  nos forneça uma pista para o que irá acontecer. E se as outras histórias já não nos surpreendem da mesma forma, não deixam de nos desconcertar. Com alguns contos, especialmente os dois últimos - Boa Gente do Campo e O Refugiado - senti não só surpresa como até algum desconforto ou inquietação. Talvez porque em ambos os casos sentisse alguma empatia pelas vítimas.
   Um retrato cruel da natureza humana que nalguns casos permanece de uma imensa atualidade, como é especialmente o caso de O Refugiado. Não deixa de ser curioso que a autora, que morreu com apenas 39 anos, seja descrita como católica devota e como tendo passado parte da sua vida numa quinta onde criava pavões e escrevia. Será que se cruzou com estas personagens ou serão elas fruto da sua imaginação?
    A escrita e a técnica narrativa são fantásticas. O primeiro conto Um Bom Homem é Difícil de Encontrar começa da seguinte forma: «A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes seus no leste do Tennessee, e não perdia uma oportunidade de convencer Bailey a mudar de ideias.» Parece que começamos a meio da história. As personagens já ali estão e conseguimos perceber a tensão que há entre elas com apenas estas linhas. Sente-se que a autora não teve necessidade de definição das diferentes personagens, como se os seus atos falassem por si ou tornassem desnecessária a caracterização de quem os praticava.
    A descrição física, por outro lado, é, nalguns casos, muito eloquente:

    «(...) e um outro retrato de um homem cujas sobrancelhas se precipitavam de dois tufos de pele para irem colidir num amontoado, no alto da cana do nariz; o resto da face projectava-se como uma falésia nua, de cujo alto se podia tombar.»

    Ao longo dos contos vamos encontrando outras passagens fantásticas:

    «Estas palavras desagradáveis pousaram na cabeça de Mr. Shiftlet como um bando de abutres na copa de uma árvore»

    ou

    «Começou a imaginar uma guerra de palavras, a ver as palavras polacas e as palavras inglesas a lançarem-se ao encontro umas das outras, a avançarem, sorrateiras, não frases, somente palavras, blá blá blá, proferidas em vozes agudas e estridentes e a esgueirarem-se para diante e depois a lutarem corpo a corpo umas com as outras. Viu as palavras polacas, reles e astutas e que nenhuma reforma emendara, a atirarem lama às palavras inglesas puras até tudo estar igualmente conspurcado. Viu-as amontoadas numa divisão, todas as palavras mortas e sujas, as deles e também as dela, amontoadas como os cadáveres nus das atualidades do cinema.»

    Uma nota final para a tradução, de Paulo Faria, que me pareceu perfeita.
    Um livro a não perder!    
   

Comentários

  1. Todos os livros que li desta extraordinária autora (uns cinco ou seis) são surpreendentes. Vale a pena.

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  2. E "Sangue Sábio" é um livro magistral!

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