A misteriosa chama da Rainha Loana, Umberto Eco (Gradiva)

Capa do livro A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de Umberto Eco, publicado pela Gradiva   Um livro diferente, não só pelas ilustrações (é designado, aliás, de romance ilustrado) mas também pelo tema de que trata. A memória ou a sua perda. O que somos ou quem somos sem a memória.

    «E o senhor, como se chama?
    Espere, tenho-o debaixo da língua.
    Tudo começou assim.»

    É desta forma que se inicia o livro. Yambo, um alfarrabista de Milão recupera parte da memória depois de um acidente vascular cerebral. Recorda-se de tudo o que lhe perguntam, mas não se lembra de quem é. Como lhe explica o médico, nós temos uma memória implícita, que nos permite executar uma série de coisas que aprendemos de forma automática, e temos uma memória explícita, através da qual recordamos e sabemos que estamos a recordar. A memória explícita divide-se em semântica e episódica ou autobiográfica. Yambo perdeu esta última, ou seja, não recorda os episódios da sua vida.
    Ignoro se esta descrição e divisão da memória estão cientificamente corretas, mas a indicação das consequências é absolutamente fascinante. Por exemplo, quando lhe pedem para dizer o nome - «como se chama» - é incapaz de responder, mas se lhe pedirem para assinar, não hesita sequer.  Como a mulher, as filhas e os netos fazem parte da sua memória pessoal, também não se recorda deles. Quando lhe contavam episódios da vida dele, ele fixava-os, mas era como se tivessem passado com outra pessoa.
    Para o ajudar a recuperar a memória, Paola, a mulher, sugere-lhe que vá uns dias para Solara, para a casa que era dos seus avós e onde passou parte da infância. Algum tempo depois, apercebe-se que não está a funcionar:

    «Não é assim que se reconstrói uma memória. A memória junta, corrige, transforma, é verdade, mas raramente confunde as distâncias cronológicas, uma pessoa deve saber perfeitamente se uma coisa lhe aconteceu aos sete ou aos dez anos, também eu agora sabia distinguir o dia em que acordei no hospital do da partida para Solara, e sabia muito bem que entre um e outro ocorrera um amadurecimento, uma mudança de opiniões, um confronto de experiências. Pelo contrário, naquelas três semanas absorvera tudo como se em criança o tivesse engolido de uma só vez e num fôlego - e forçosamente tinha a impressão de ter ficado atordoado por uma mistura inebriante.»

    Em Solara faz uma viagem no tempo e acompanhamo-lo através dos livros, das revistas e da música pelos seus anos de infância e juventude. E nesta viagem no tempo recupera não apenas a sua memória, mas a memória de uma geração. Redescobre histórias do seu passado pessoal e familiar que, contudo, não o apaziguam totalmente («Encontro-me de novo perante uma barreira de nevoeiro.»). Tem novo acidente, mais grave do que o primeiro, e fica em coma.
    Perante a descrição da situação senti-me arrepiada:

    «Contudo, no coma profundo, toda a gente sabe, o cérebro não dá sinais de atividade, enquanto que eu penso, sinto, recordo. Pois é, mas isto é o que dizem os de fora. O cérebro dá um encefalograma plano segundo a ciência, mas o que é que a ciência sabe acerca das astúcias do corpo? Se calhar, o cérebro aparece plano nos seus monitores, e eu penso com as vísceras, com os bicos dos pés, com os testículos. Eles acham que não tenho atividade cerebral, mas eu ainda tenho atividade interior.»

    E, a partir daqui, entre recordações, questiona-se sobre a inteligência humana, a memória e a forma como percecionamos a realidade, enquanto procura o rosto da jovem por quem se apaixonou no liceu:

   «Mas ter-me-á alguma vez acontecido, num sonho, sonhar com outro sonho, como estarei a fazer agora? E se, em vez disso, alguém estivesse a projetar um filme diretamente no meu cérebro?»

     E na névoa procura a chama.
     Um livro simultaneamente inquietante e fascinante.

   
A misteriosa chama da rainha loana é um romance ilustrado publicado pela gradiva
A Misteriosa Chama da Rainha Loana é um romance ilustrado.
***

Comentários

  1. Do meu ponto de vista, penso que uma crítica literária não deverá ir tâo longe na divulgação do conteúdo. De resto, orgulho-me de ter uma filhota que considero qualificada para passar de critica literária a escritora

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