Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio (Publicações Dom Quixote)

    Uma amiga emprestou-me este livro que eu queria ler há algum tempo, dizendo-me que era um livro extraordinário. Não foi a única a dizer-mo. Mau Tempo no Canal integra a lista dos 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos, selecionados por um júri convidado pela Estante. Um clássico, portanto, como refere Italo Calvino deveria dizer que estava a relê-lo e não a lê-lo. Mas, na realidade, só agora o li. E mais, confesso que não foi um livro fácil de ler.
    À superfície é um livro sobre os Açores ou mais precisamente sobre as designadas ilhas do triângulo, Faial, Pico e São Jorge e sobre a vida dos seus habitantes no pós I Guerra Mundial. Uma sociedade profundamente estratificada e fechada, isolada do mundo e distante não só do continente como das outras ilhas, mesmo as mais próximas. A existência de doentes com peste sem qualquer auxílio médico é quase inimaginável. Contudo, a questão da situação da mulher parece-me ser o ponto central deste romance, personificada na Margarida, mas também na sua mãe e nas outras mulheres que, embora secundariamente, aparecem e têm vidas completamente apagadas, isoladas até, determinadas pelos pais primeiro e pelos maridos depois.
    Margarida, Clark pelo lado da mãe, e Dulmo  pelo lado do pai, apesar de pertencer a uma família com ascendência aristocrática, vive uma situação económica difícil, causada pelo pai e que este espera resolver casando bem a filha. Margarida depois de viver a ilusão de uma paixão, sonha com a possibilidade de ir viver para Londres e trabalhar como enfermeira, mas termina por se resignar ao destino traçado e desejado pela família:
    "(...) Numa terra em que tudo são heranças e negócios, o que vale uma rapariga? são os vestidos, é o baile, é o dia de anos, um arraial a que se vai... (...) Eu sou uma espécie de prédio que por acaso ficou livre. (...) O tio sabe o que é  «ficar desamparada»? Porque eu queria entender estas coisas, meu Deus! Que fizessem de mim o que quisessem, mas que me deixassem! que me deixassem!..." (pg.188)
     Mau Tempo no Canal é isto e é muito mais, é uma história de amor às ilhas e às suas gentes, à coragem e generosidade dos baleeiros, às diferentes características e pronúncias de cada uma destas ilhas ("Antão a gente há-de deixar perder ua riqueza daquelas?...Há meses qu'o meu nã tranca ua baleia! Não há peixe de caldo...Se nã fôssim as lanchas da lenha e o lambique do figo, timos passado fôme!"). 
    Curiosamente, as personagens não são praticamente descritas, com exceção de Cândia Furoa que aparece fugazmente e contudo é cuidadosamente descrita (pg.409). Depois do índice existe uma tábua de personagens, com indicação dos laços familiares  e os lugares de ação. Se Vitorino Nemésio optou por quase não descrever as personagens, já quanto às ilhas é pródigo e generoso nas descrições que faz.
    Impossível resistir a repetir algumas palavras e imagens:
    "(...) a menina não, que é um mar de alegria!, mas a minha Clara e lá as suas primas da Horta são todas tão triste...a modos emonadas!" (pg. 376)
    "(...) Os seus últimos meses traziam-na desarvorada, como se fosse uma coisa de desmontar e lhe ficasse por fim só a peça central à procura das outras espalhadas." (pg. 148)


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