Olhos de caçador, António Brito (Sextante Editora)

    Olhos de caçador é apresentado como o romance da face desconhecida da Guerra Colonial. Apesar de editado em 2007, já conta com várias reedições. É narrado na primeira pessoa, pelo Zé Fraga, um jovem, mobilizado para combater na guerra colonial em Moçambique. Nascido nas beiras, na zona raiana, cresceu a contrabandear e a levar emigrantes a salto, o que o torna especialmente apto para várias missões durante a comissão. 
   O livro abre com um curtíssimo capítulo "Aquele que um dia foi soldado" e começa da seguinte forma:
    "Passou muito tempo desde que matei um homem pela primeira vez."
     Começando pelo fim, pelo tempo presente, no qual Zé Fraga é um sem abrigo, com uma prótese, ficamos logo cientes das histórias que se seguirão e do tom das mesmas:
    "Não sei se é sono ou um lento pingar  da memória pelas fendas da vigília que me projecta lá para trás, levando-me de novo aos dias do Niassa e à glória dos tiroteios com os pretos nas matas de Cabo Delgado, no tempo em que corria na frente sem pensar, arrastando os outros atrás de mim."
    Não me decido a classificar Zé Fraga como herói ou anti-herói, porque é bêbedo, briguento e indisciplinado, mas é, ao mesmo tempo, arrojado, defensor dos mais fracos e da justiça. Mas, na realidade, nós somos todos os heróis da nossa vida. 
    É pelo sentido da justiça e coragem que Zé Fraga é duramente penalizado pelo capitão, que acusa de ter matado um tenente que o acusara de torturar um turra. E esta é a verdadeira guerra que Zé Fraga trava, como se a outra, contra os turras ou os frelimos, como os designa, fosse meramente um pretexto ou cenário. Se não esperava encontrar no livro um libelo anti guerra colonial, surpreende-me apesar de tudo a indiferença ["Mandaram-me contrariado para esta terra de merda, mas gostava do que fazia. Dava-me uma tusa do caraças correr atrás dos matumbos e descobrir onde se acoitavam, cercá-los a dormir, deixar-lhes pistas erradas e enganá-los, armadilhar a água que bebiam, a comida que mastigavam, o chão que pisavam, os mortos que encontravam, emboscá-los, rebentá-los a tiro. Isso sim, enchia-me as medidas."(pg. 186)]
    A cena da tortura, na qual o capitão tortura longamente um guerrilheiro, é impressionante, mas apenas o tenente se opõe frontalmente. A restante oposição é temerosa, em parte devido à hierarquia e ao terror imposto pelo capitão, mas também por uma certa indiferença relativamente à vida e, talvez também, a um certo fascínio pelo macabro, que leva os soldados a procurar, fotografar  e traficar imagens de feridos, estropiados e mortos.
    
    Aparecendo como um romance, ficamos sem saber se é verdadeira a figura do capitão (Galo Doido) e os crimes que cometeu, mas dá-nos uma imagem de uma guerra para a qual os soldados não foram preparados e na qual têm de se proteger não apenas do inimigo declarado, mas também daqueles que estão na mesma trincheira, sejam loucos declarados ou não. 
    Olhos de caçador está escrito como se fosse uma história que nos é contada, com todos os sinais de oralidade, no que tem de bom e de mau, mas tem o enorme mérito de falar da guerra colonial, de que não podemos nem devemos esquecer, como se fosse um livro de aventuras.

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