Um detalhe menor, Adania Shibli (D. Quixote)

     Um blogue sobre livros não é o espaço certo para debater política e falar sobre guerras, mas quando os efeitos chegam aos livros e aos autores, a situação é distinta. Não conhecia esta Autora, Adania Shibli. Ouvi falar dela pela primeira vez quando li a notícia que a Feira do Livro de Frankfurt tinha decidido cancelar e adiar indefinidamente a entrega do prémio LiBeraturpreis, prémio destinado a homenagear escritoras do Sul Global por uma obra recém-publicada em alemão.

    Na sequência deste adiamento/cancelamento, mais de 350 autores, incluindo alguns que muito aprecio e respeito, subscreveram uma carta na qual lamentam o sucedido considerando que a Feira do Livro de Frankfurt tem «responsabilidade de criar espaços para escritores palestinos compartilharem seus pensamentos, sentimentos e reflexões sobre literatura nestes tempos terríveis e cruéis, e não de silenciá-los». Eu diria que esse é o papel da literatura: compartilhar pensamentos, sentimentos e reflexões. Não podendo deixar de manifestar a minha simpatia com a causa palestina, sobretudo depois do que se tem passado nestes últimos dias, discordaria do cancelamento da atribuição do mesmo prémio a autor(a) israelita, pelas mesmíssimas razões.

    Contudo, e esse será um efeito não ponderado por quem decidiu cancelar a entrega do prémio, admito que, tal como aconteceu noutros casos - o mais conhecido dos quais foi o julgamento de Gustave Flaubert, por causa do seu romance Madame Bovary - o cancelamento tenha atraído mais interesse e curiosidade sobre a obra de Adania Shibli Provavelmente os ecos deste Prémio não chegariam a muitos leitores fora da Alemanha se tivesse sido entregue, mas, tendo sido cancelado, teve um efeito multiplicador.

    A história está resumida na contracapa:

    «No verão de 1949 – um ano depois da Nabka, a catástrofe que expulsou mais de 700 mil palestinianos das suas terras, e que os israelitas celebram como a Guerra da Independência -, uma unidade de soldados israelitas, destacada para patrulhar a fronteira do recém-criado Estado de Israel com o vizinho Egito, ataca um grupo de beduínos no deserto de Negueve, dizimando-o. Entre as vítimas encontra-se uma adolescente que sobrevive ao massacre. É capturada e violada e depois assassinada e enterrada na areia. É a manhã de 13 de agosto de 1949.

    Muitos anos mais tarde, quase na atualidade, uma jovem mulher em Ramallah descobre acidentalmente uma breve menção a esse crime brutal. Obcecada com o assunto, não só devido à natureza macabra do caso, mas também devido ao «detalhe menor» de ter acontecido precisamente vinte e cinco anos antes de ela nascer, irá embarcar numa viagem para tentar desvendar alguns dos detalhes que envolvem o crime.»

    Um Detalhe Menor está dividido em duas partes, a primeira descreve o que se passou em 1949, a segunda acompanha a procura da verdade relativa àquele episódio por uma jovem mulher (escrito na primeira pessoa). Mas se a história nos choca, o que verdadeiramente nos apanha de surpresa é o sufoco dos habitantes da faixa de Gaza. Apesar de tudo o que ouvimos, vemos e lemos não conseguimos imaginar: as zonas A, B, C e D, a necessidade de autorizações para circular, as barreiras frequentes «É a barreira do medo, cuja origem é o medo da barreira do posto de controlo.» (pg. 89). E a par disso, a progressiva supressão da presença palestiniana:

    «Apesar disso, não paro de olhar para o mapa israelita aberto sobre o banco ao meu lado, com medo de me perder nos meandros desta paisagem que incute em mim um forte sentimento de estranheza depois de uma longa ausência, com todas as mudanças que ocorreram nesse período e que persistem em confirmar a supressão de toda e qualquer presença palestiniana: nos nomes de cidades e aldeias escritos nas placas de indicação, nos edifícios recentes, nos cartazes publicitários escritos em hebraico, e até nos vastos campos que delimitam o horizonte à minha direita e à minha esquerda». (pg. 103)

    Como se pode viver assim?

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