O Grito dos Pássaros Loucos, Dany Laferrière (Antígona Editores Refractários)


O Grito dos Pássaros Loucos
 

    Já tinha folheado este livro e hesitado em comprá-lo, sobretudo pela falta de tempo para ler aqueles que já tenho amontoados - comprados, oferecidos, ou emprestados - contudo, numa recente visita à Biblioteca de Oeiras, encontrei-o exposto logo à entrada e trouxe-o comigo. Bastou ler a contracapa:

   «Como poderíamos sentir-nos cidadãos de um país onde mataram o nosso melhor amigo e procuraram matar-nos também? Sem razão aparente. Um país onde andam leopardos em liberdade. Um país em que a nossa própria mãe tem de nos suplicar que a deixemos, pois mais vale o exílio do que a morte.»

    Confesso que conheço muito mal a história do Haiti, pouco mais que os nomes Papa Doc e Baby Doc, os terremotos de 2010 e 2021 e, mais recentemente, os confrontos de gangues e a situação de fome e pobreza generalizada. 

   A história narrada em O grito dos pássaros loucos decorre durante a ditadura de Baby Doc, que durou 15 anos, desde a morte do seu pai em 1971 até à sua fuga para o exílio em França, em 1986. Durante as presidências de Papa e Baby Doc, milhares de haitianos forma mortos e torturados pelos tonton-macoutes.

    O livro, constituído por capítulos curtos, em que ao lado do título são indicadas as horas e os minutos, decorre em menos de 24 horas. É narrado na primeira pessoa do singular num evidente registo autobiográfico. Ossos Velhos (Vieux Os: expressão haitiana para designar alguém, que tem o hábito de se deitar tarde) chega a casa onde vive com a sua mãe às 12h07 e esta diz-lhe que todos os amigos o procuram. Pouco depois fica a saber que o seu amigo Gasner Raymond, jornalista, tinha sido assassinado e o seu corpo abandonado na praia. Gasner tinha como ele 23 anos. Recusa acompanhar os amigos que querem descobrir quem matou Gasner, reconhecendo o medo que sente. Passeia então um pouco ao acaso e quando regressa a casa a mãe pede-lhe que parta no dia seguinte de manhã, seguindo as pisadas do pai. A mãe conseguiu saber que o filho corria perigo de morte e diz-lhe que é crucial que ninguém saiba que ele vai partir no dia seguinte. Às 15h59 sai de casa e deambula pela cidade de Port-au-Prince até à madrugada do dia seguinte, em que partirá para o exilio.

    Há várias alusões à literatura clássica, em particular a Antígona, a cuja representação assiste, encontrando depois a irmã de Gasner que reivindica o direito de sepultar o corpo do irmão, e, de forma mais velada, ao mito de Orfeu e Eurídice, porque passa a noite à procura de Lisa, a mulher que ama. Encontra-a apenas já adormecida, em casa, depois de ter conseguido convencer a mãe dela, que designavam de Cérbero, a deixá-lo entrar. Vê Lisa, mas perde-a para sempre.

    Li O grito dos pássaros loucos, em permanente ansiedade, tal é a violência que domina aquela cidade, as ruas por onde ele circula durante aquele dia e noite e sem conseguir imaginar como acabará. Quando embarca no avião senti-me aliviada, confesso.

    Um livro extraordinário.

     Roubei esta descrição da mulher haitiana:

    «Na mulher haitiana, coexistem pelo menos duas personalidades. Uma muito conservadora, que remete tudo para Deus; outra, totalmente revolucionaria, que combate a injustiça, contesta todo o poder absoluto e enfrenta, muitas vezes sozinha, qualquer perigo suscetível de ameaçar a vida dos filhos (sobretudo dos filhos varões). Onde os homens se escondem, as mulheres apresentam-se de cara descoberta. E, na mesma mulher, estas duas atitudes podem suceder-se num período de não mais de meia hora.» (pg. 250)

Comentários

Os mais lidos

O Sétimo Juramento, Paulina Chiziane (Sociedade Editorial Ndjira)

Desafio 100 livros BBC

Niketche, Paulina Chiziane (Caminho)