Gente feliz com lágrimas, João de Melo (Leya, SA)

   
    O título deste livro é belíssimo. Há muito que alimentava a vontade de o ler devido sobretudo ao título. Foi uma feliz coincidência tê-lo lido depois de uns dias passados nos Açores, com a recordaçao ainda presente da neblina, do mar, das ilhas, das vacas, das hortênsias e das criptomérias. E com a lembrança da igreja, omnipresente. Quando foi pubicado em 1988 foi considerado um romance inovador na estrutura, mas penso que ainda o é. Apresenta-se dividido em cinco livros. 
    O livro primeiro, O tempo de todos nós, tem um capítulo inicial com o título Um qualquer de nós. Os restantes capítulos deste livro são narrados à vez pelo Nuno Miguel, Maria Amélia e Luís Miguel, irmãos mais velhos de nove filhos sobreviventes.  Neles apresentam-se na primeira pessoa do singular, mas como se falassem com alguém, eventualmente um entrevistador ou um biógrafo. Não contam realidades distintas, mas visões pessoais de uma infância partilhada e infinitamente triste a que Nuno Miguel e Maria Amélia tentam escapar através da entrada num seminário e num convento, respetivamente. Mas a falta de vocação e a frieza destas instituições só servem para prolongar a tristeza da infância. A extrema pobreza, a exigência e a agressividade do pai é acompanhada pela mãe e até agravada. Mais tarde, Nuno Miguel falará no único problema das suas vidas. Todos se ressentem ainda duma inexplicável ausência de colo materno (pg. 352).
    O livro segundo, A 3ª pessoa do singular, narra a saída (expulsão?) de Nuno do seminário, a vida em Lisboa, inicialmente partilhada com a irmã mais velha, Maria Amélia, a estudar para ser enfermeira, e a paixão por Marta.
    O livro terceiro, Ùltimo suspiro de mamã, narra a ida de Nuno Miguel a Vancouver e Toronto, onde residem todos os seus irmãos, para se despedir da mãe, agonizante. Neste encontro, Nuno Miguel encontra os irmãos que quase desconhece (Não me lembro de os ter visto nascer, não me lembro como choravam ou sorriam. pg 312). O sucesso dos irmãos e irmãs é patente nas casas e nos carros que ostentam, mas sentem um imenso orgulho naquele irmão que permaneceu em Portugal e onde triunfou como professor, primeiro, e como escritor, depois. A diferenças das vidas é ilustrada na forma distinta como Nuno Miguel e os emigrantes açorianos - que poderiam ser os seus irmãos - são tratados à chegada ao Canadá.
    O livro quarto, A outra versão de Marta, é a história da paixão, casamento e divórcio de Nuno e Marta. De como se vão afastando imperceptivelmente ao longo dos anos, até que a distância entre ambos se torna inultrapassável.
    O livro quinto, Regresso invisível, relata o regresso de Nuno Miguel à casa da família que, por vontade do pai, herdou. Nesta viagem é acompanhado por Rui Zinho, seu pseudónimo, e encontra as últimas mulheres da família: excessivamente velhas, brancas e pelo menos tão nocivas como o luto das suas vestes.
    O livro acaba com o Livro zero, A felicidade sábia, que é um posfácio e uma declaração de amor às ilhas açorianas, a Lisboa e à família.O regresso, a reconciliação possível com as origens.

     Na contracapa o livro é apresentado como uma saga que percorre cinco mundos através da obsessiva busca de felicidade que move os seus protagonistas. Discordo desta ideia. Há uma busca pela sobrevivência com dignidade mas não da felicidade. Como é dito a propósito de Maria Amélia, o hábito de ser triste culpabiliza nela a própria ideia de felicidade. Tal como nós, não sabe ser feliz sem lágrimas, nen rir sem o remorso da alegria, e isso vê-se-lhe nos olhos. (pg. 49). A ideia da felicidade temperada com lágrimas é retomada mais vezes, a propósito dos pobres (pg. 27) mas também do pai quando depois de ter deixado o filho, Nuno Miguel, às portas da morte consegue que ele coma: E os olhos dele, rasando-se de lágrimas, eram afinal olhos felizes com lágrimas (pg. 208). E em todo o livro perspassa uma imensa tristeza, raramente interrompida. Mesmo no final, quando Nuno Miguel encontra os seus livros intactos, não lidos na casa que herdou dos pais e sente a incompreensão daqueles para quem especialmente escrevera, E um escritor que não comece por ser lido por um único que seja dos membros da sua tribo será sempre o pior, o mais inútil de todos os escritores do mundo.(pg. 455)
     Um livro belíssimo, a não perder.

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Veja ainda:  Entrevista com o autor nos 25 anos da primeira edição: https://www.youtube.com/watch?v=6e96PlyGjK8

 
    

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