Os Cães e os Lobos, Irène Némirovsky (Relógio d'Água)

Os Cães e os Lobos
    Antes de falar no romance, tenho de falar na capa de Os Cães e os Lobos, lindíssima, de Carlos César Vasconcelos sobre fotografia de Henri Cartier-Bresson. Da Autora, Irène Némirovsky, só li O Baile, há já  muitos anos. Há tantos, que não encontro qualquer referência neste blogue, em que escrevo/descrevo todos os livros que leio desde 2010. Mas, tanto quanto me recordo, são romances próximos em termos dos ambientes e das personagens que os habitam. Ambos muito marcados pelas vivências da Autora, judia, nascida em Kiev, no início do século XX. Em 1917, a família, que vivia em São Petersburgo, foge para Paris, de onde voltará a fugir durante a II Guerra Mundial. Uma estrangeira sempre. Como escreve "(...) ah, eram estrangeiros! Sim, estava tudo dito. Seres errantes, sem raízes, emigrantes, suspeitos." (pg. 101)
   Ou ainda "Era melhor ter esses laços, múltiplos e delicados ou fortes e sólidos, do que ficar como aquelas mulheres, como ela própria, um ser sem raízes batido pelo vento..." (pg. 184)

     Ada, a protagonista de Os Cães e os Lobos, é uma judia pobre, órfã de mãe, que vive com o seu pai e avô, a que depois se vem juntar uma tia viúva com dois filhos. Quando foge de um pogrom com o primo, Ben, refugia-se em casa de uns parentes distantes, ricos, e apaixona-se por Harry, o único descendente. Esta paixão vai marcar a vida de ambos, bem como do primo, primeiro em Kiev e, anos mais tarde, em Paris. 

    Sendo os seres humanos moldados por um conjunto de fatores, de que  a religião não é o menos relevante, há uma necessidade constante da Autora de explicar como eram (são?) os judeus. Confesso que em certas passagens, quase que conseguia imaginar o Woody Allen como narrador, como esta:

    "O pai de Ada ia à Sinagoga de vez em quando, como quem se vai encontrar com um capitalista que, se quisesse, nos poderia ajudar nos negócios ou mesmo tirar-nos da pobreza para  resto da vida. No entanto, como tem muitos protegidos, muito pedinchões, e apesar de ser realmente muito rico, muito grande, muito poderoso, não se pode interessar por nós, pobres e humildes criaturas... Contudo, podemos sempre bater-lhe à porta... Porque não? Pode ser que repare em nós..." (pg. 31)

    Para além da história de Ada, o romance é muito rico na descrição das personagens, das suas atitudes e motivações. Da forma como reagem:

    "Tinha tido uma educação esmerada e sabia que a dor e o despeito não se deviam exprimir com imprecações ou gritos; no entanto, pertencia  a uma classe social inferior à das cunhadas, pois só era rica há duas gerações, e não há três como os Sinner. Ainda não tinha aprendido a revelar o sofrimento como elas o conseguiam fazer, apenas com um tremor dos lábios ou com um gesto altaneiro da cabeça. A cunhada mais velha era muito considerada na família por ter aceitado o golpe recebido pela morte de um irmão muito querido apenas com um único gesto: tinha inclinado a testa, como se estivesse a rezar e, em seguida, levantou os olhos para o céu, expressando assim, sem uma palavra, a sua resignação perante os desígnios da Providência Divina, o seu desgosto sincero e a sua esmerada educação." (pg. 89)

    O título resulta do facto de Ben, o primo de Ada, e Harry, o familiar distante por quem ela se apaixona, serem muito parecidos fisicamente, mas diferentes em tudo mais: "Como se parecem o cão e o lobo."

    Um romance inesquecível.     

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