Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévski (Civilização Editora)
Confesso - antes de qualquer outra coisa que possa escrever - que estou com algum receio de fazer esta crítica.
Tinha decidido que seria este ano que me iniciaria nos clássicos russos. E "Crime e Castigo" é um daqueles clássicos. Russo também, sim. Mas essa parte até se dispensaria. É um clássico da literatura, daqueles que ouvimos falar toda a nossa vida. Eu, pelo menos, ouvi. Sem sequer saber muito bem do que tratava. Então, há umas semanas, fui jantar com dois amigos, ela do Cazaquistão, ele da Croácia, e, quando passámos para o tema dos livros - não me recordo já como nem porquê - ambos me olharam como se eu fosse um bicho estranho ('Como assim, nunca leste "Crime e Castigo"? Tens de ler!'). Pareceu-me o momento certo. Assim que terminei o que estava a ler anteriormente ("The White Princess"), peguei no "Crime e Castigo", uma versão muito antigo que esse meu amigo me tinha emprestado e que acabei por trocar por esta de 2015, da Civilização Editora, por medo de estragar o primeiro (e porque, convenhamos, gosto de ter os livros que leio).
A única ideia que tinha do livro era a
seguinte: um estudante comete um assassínio (crime) e tem de conviver com o tormento psicológico que daí advém (castigo). E várias pessoas -
incluindo essa minha amiga e a minha avó me disseram que era um livro duro, que
mexia bem fundo connosco e com os recônditos mais obscuros da nossa alma. E é
por isso que, agora, tenho algum receio da crítica que vou fazer.
Em primeiro lugar, fiquei um
pouco desapontada com o livro. Estava a contar com uma maior exploração do
interior das personagens. Em segundo lugar, não me identifiquei minimamente com
o personagem principal - Raskolnikoff - tendo-o para mim como uma das
personagens mais irritantes e odiosas com que já "travei
conhecimento".
Depois de meses a debater-se
com a possibilidade de perpetrar o crime, o ex-estudante (decidira deixar de
frequentar as aulas na universidade) decide-se finalmente a matar uma velha
penhorista, onde havia já empenhado alguns pertences, a fim de a roubar. Não
deixamos de estranhar que esta decisão seja tomada depois de receber uma
missiva da mãe que, além de lhe enviar dinheiro, lhe comunica que ela e a irmã
dele vão mudar-se para perto, a fim de celebrar o casamento da jovem com um
homem de posses. Compreendemos mais tarde que o móbil do crime não foi
exatamente o dinheiro - mas não entrarei em detalhes para quem queira ler o
livro, a não ser que essa é a parte mais interessante, ainda que, como disse
acima, sentisse que poderia ter sido mais explorada.
O ato é totalmente premeditado
e, no entanto, não corre como planeado porque aparece em casa a irmã da velha
senhora, que acaba também por morrer às mãos de Raskolnikoff. Na sequência do
crime, o ex-estudante cai doente, possivelmente com um esgotamento nervoso que
não melhora por se sentir constantemente perseguido, provocando os agentes da
autoridade e debatendo-se se deverá entregar-se à justiça ou não. No entanto,
nem por um momento mostra o menor sinal de arrependimento.
"A velha não significa
nada", pensava, exaltado, arrebatado pela cólera, (...) "A velha não
foi mais do que um acidente... O que eu pretendia era dar o salto o mais breve
possível... Não foi uma criatura humana que matei, foi um princípio!
Efetivamente, matei o princípio, mas não soube passar por cima dele e fiquei do
lado de cá... Apenas soube matar... E, ainda assim, parece que não foi muito
bem... (...) Não, eu não tenho senão uma vida , não estou para esperar a
'felicidade universal'. Quero viver para mim próprio, de outra maneira não vale
a pena existir".
O livro deve, de facto, ser
lido - não quero que se confunda a minha irritação com o personagem com
irritação com o romance. Foi um livro que, depois de ler e até agora, me fez
sentir necessidade de o debater - e isso é, em meu entender, excelente!
Li agora, também pela primeira vez, este livro, numa edição distinta e, presumo, de outro tradutor (ed. Relógio D'Água, tradução e notas de António Pescada). Já conhecia a história e compreende-se a importância que mantém e a imunidade ao tempo. Trata-se de uma interrogação sobre o direito à vida e também sobre o direito de matar. Ao longo do livro, o protagonista, Raskólnikov, questiona ou justifica o direito que assiste a alguns de matar outros. Aliás, um artigo que publica num jornal é a chave para o crime que pratica. Se o excerto transcrito acima é relevante para a compreensão do crime que pratica, outros existem que reiteram este entendimento:
ResponderEliminar...uma vez fiz a mim mesmo esta pergunta: se, por exemplo, Napoleão estivesse no meu lugar e não tivesse, para iniciar a sua carreira, nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia do Monte Branco, mas, se em vez de todas essas coisas belas e monumentais, tivesse apenas uma qualquer velha ridícula, viúva de um modesto funcionário, e que ainda por cima fosse preciso matá-la para tirar o dinheiro da arca (para a carreira, compreendes?), ele seria ou não capaz de o fazer, se não tivesse outra saída? (...) Pois também eu....deixei-me de reflexões...matei-a...seguindo o exemplo da autoridade...
Do ponto de vista da compreensão do impulso criminoso este é um livro fascinante, sobretudo porque suscita questões que se mantém, mesmo depois de virada a última página.
Nota-se que o livro foi escrito numa lógica de capítulos - porque foi sendo publicado em fascículos - o que leva até à criação de algum suspense no final de cada um. A edição é cuidada, incluindo no início Notas acerca das Personagens do Romance. O ponto fraco, em meu entender, é a opção de edição das Notas no final do livro e não em cada página.
Sabe, eu compreendo a sua recensão, apesar de no meu caso ter gostado bastante do livro. Convém não confundir a obra com os personagens e ver ao fundo a verdadeira natureza humana. Lembre-se do Processo de Kafka onde encontrará similitudes.
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