A Confissão da Leoa, Mia Couto (Editorial Caminho)

     
    O livro começa assim:
    Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem  ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentado. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar.  
    Um início extraordinário que o resto do livro não desmerece. Difícil foi parar de roubar frases, de as saborear. Foi por isso que levei tempo a lê-lo.
    Como o autor explica, este livro tem por base a história real da contratação de caçadores para matarem leões que tinham atacado várias pessoas no norte de Moçambique. Para além da caça, os caçadores tiveram de lidar com a convicção dos locais que os leões eram habitantes do mundo invisível, mas, aos poucos, aperceberam-se que a situação resultava de conflitos sociais  aos quais não podiam acorrer. Arrisco a dizer que a história por trás da história é a denúncia da imensa violência exercida sobre as mulheres. Com uma escrita poética, o que parece quase um paradoxo:
    Porque, a bem ver, nunca cheguei a matar ninguém. Todas essas mulheres já estavam mortas. Não falavam, não pensavam, não amavam, não sonhavam. De que valia viverem se não podiam ser felizes.
(...)
    Foi melhor que essas meninas nunca tivessem crescido. Porque elas só se sentiriam vivas na dor, no sangue, na lágrima. Até que, um dia, de joelhos, pediriam perdão aos seus próprios carrascos.
     O livro é escrito a duas vozes, ou em duas versões, a de Mariamar, jovem mulher da aldeia de Kulumani, a única sobrevivente de quatro irmãs, e a do caçador, Arcanjo Baleiro, que chega a Kulumani acompanhado de um escritor.
    Mas não é apenas em Kulumani que as mulheres sofrem (acordávamos de madrugada como sonolentos soldados e atravessávamos o dia como se a Vida fosse nossa inimiga.), também olhando para a mãe, Arcanjo Baleiro, o caçador, diz que no rosto dela viu a tristeza, a tristeza de toda a humanidade. E é quando  está em Kulumani, que Arcanjo Baleiro descobre como a mãe  morreu e que a morte do pai não foi acidental.
   Não se trata apenas de sofrimento físico das mulheres, mas também das interdições a que estão sujeitas -  não podem entrar na shitalae e muito menos emitir opinião sobre assuntos de gravidade. Uma personagem feminina destaca-se pela ousadia, a primeira-dama, D. Naftalinda, mulher do administrador - que tinha um traseiro que obscurecia o dia, como um súbito eclipse de sol -. Por causa dela, ele que gostava de política, decide voltar a ser professor.
    Confesso que a leitura do livro me abalou. Não sabia que era esta a temática abordada e não estava preparada para a violência relatada, mas é, até por isso, inquestionavelmente, um livro a não perder.

    Acabo com mais uma frase roubada, a propósito da morte do avô de Mariamar:
   Não quiseram que eu estivesse presente. Não para me poupar da despedida. Mas para que essa despedida demorasse a vida inteira.

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