Para onde vão os gatos quando morrem?, Luís Cardoso (Sextante Editora)

Luís Cardoso @ Clube de Leituras
    Há qualquer coisa de mágico quando lemos um livro no lugar em que a história acontece. Foi o que aconteceu com este livro, cuja leitura iniciei na ilha de Ataúro. Existem lugares que já foram cenário de vários livros e filmes, e é fácil para o leitor visualizá-los, mas há outros que só raramente são mencionados ou usados como pano de fundo de uma história. Nestes casos lê-los, enquanto sentimos o vento e vemos a paisagem que é descrita, ou ouvimos algumas palavras em tétum que são ditas, torna a leitura especial (até a menção repetida aos tokés, que ouvíamos diariamente, sendo que no glossário é referido que se trata de um Lagarto Pactydatilus gottutus que emite um som que se assemelha a toké).
    Não aconteceu por acaso. Como já fiz anteriormente, antes de partir de férias para Timor-Leste, fui à Livraria Palavra de Viajante e pedi livros recentes de autores timorenses ou que decorressem em Timor. Com a competência e simpatia de sempre, sugeriram-me dois livros, Dili, a cidade que não era, de Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, e Para onde vão os gatos quando morrem, de Luís Cardoso.
    O primeiro, li-o antes de partir. Trata-se de uma resenha histórica sobre a cidade de Dili ou, como é referido na conclusão, Em poucas páginas fizemos uma rápida viagem pelos 150 anos da história da cidade. Um bom roteiro para mais que conhecer, perceber esta cidade.
    O segundo comecei a ler na ilha de Ataúro. Sentada, ao sol, e com uma vista que se estendia até ao mar. Trata-se do primeiro livro que leio deste autor. O livro está dividido por dias e vai, de forma sequencial, até ao vigésimo dia. Como refere Frei Bento Domingues no Prefácio, este «romance é escrito como uma parábola bíblica. Acompanha-o A Criação do Mundo, de Miguel Torga, outra parábola bíblica quase laicizada». 
    Tal como na Bíblia, os parágrafos (versículos) são numerados. A impressão que tive quando acabei de o ler foi que se tratava de dois livros distintos, porém, sequenciais. Ernesto, o protagonista, é uma criança a viver com o pai, chefe de posto colocado em Ataúro, e não se lembra de nada relacionado com a mãe: «Havia um manto de silêncio em torno deste trágico acontecimento que deixou o meu pai viúvo e triste, enterrado numa cadeira de lona, entre cigarros, livros e conhaque, que o faziam sonhar com um certo paraíso inaugural que ficava lá para os lados de tasi-balu».
    Até que um dia o pai o manda esperar uma pessoa que chegaria de barco, e essa pessoa é Beatriz.
    Beatriz não vem apenas para acompanhar Ernesto, ao contrário do que parecia inicialmente. Contudo, até ao sexto dia, Ernesto vive protegido pelo pai, por Beatriz e por Silêncio, que o acompanha para todo o lado. Mas no sétimo dia, quando chega a casa, percebe que, na sua ausência algo terrível se passou e decide procurar Beatriz por toda a ilha. E nessa procura desesperada cai e fica como se fosse no limbo, o sítio para onde os gatos vão quando morrem. E depois a história ganha uma velocidade que não tinha antes, e assistimos a Ernesto a vivenciar o 25 de abril, a declaração de independência, a ocupação indonésia e finalmente a independência. Sai de Ataúro, depois de Timor, vive em Paris e também em Portugal, para finalmente regressar a Timor. (Coincidentemente, Ernesto chega a encontrar-se com Luís Cardoso, na estação de Paço de Arcos e seguem os dois pelo longo passeio marítimo até Carcavelos.)
    Apesar dos ritmos distintos, gostei muito de ler este livro e da mistura entre realidade, tradição e imaginação, como se a vida precisasse destes ingredientes para ser contada.   

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