Seara de vento, Manuel da Fonseca (Editora Ulisseia)

 
  Na pilha de livros que tenho para ler, resolvi entremear os recentes, que me foram agora oferecidos, com velhos livros que fui buscar às estantes familiares. Quando os estava a arrumar, folheei este e não consegui largá-lo.  
  A escrita, sobretudo, surpreendeu-me. Lê-lo é quase como ver o que nos é contado. A paisagem, a ventania, o forno derruído, as personagens. Avançamos pela história como se estivéssemos a seguir as indicações do encenador: Estão ambas junto da lareira apagada, sentadas nos mochos, sumidas nos vestidos pretos. Em redor, sombras espessas diluem as paredes e os recantos numa só mancha circular. Apenas as cantarias da lareira, batidas pela luz que vem da porta, se salientam aprumadas.
    Mas o rigor das descrições é acompanhado de uma enorme riqueza de imagens: Às arrecuas, Amanda Carrusca procura o momento oportuno para novo pontapé. O vento enche-lhe as saias, a ponta do lenço, dobrada para o alto da cabeça, sobe como uma enorme crista negra. 
    A história que nos é contada é baseada num caso verídico, passado no Alentejo, numa pequena vila próxima de Beja, nos anos 30 do século passado, embora o autor diga no final que se trata de ficção (porventura terá sido esta declaração final do autor que evitou que o livro tivesse sido censurado quando foi publicado pela primeira vez em 1958).
    O Palma, que vive com a mulher, a sogra e os dois filhos mais novos, um dos quais autista, é acusado de roubar sacas de cevada e por isso não consegue arranjar trabalho. Desesperado, começa por tentar caçar (inolvidável a luta com o pastor e com a águia pelo corpo do coelho) e depois aceita começar a contrabandear. O desespero que ele sente é-nos transmitido também pela imagem do forno que caiu, pelo balancear e chamamento do filho autista e pela sempre presente ventania. Sentimos a todo o momento que se vai dar uma tragédia cujos contornos ignoramos mas que antecipamos logo às primeiras páginas.
    Quando acabei de o ler percebi que um livro extraordinário não precisa de seguir regras nem truques para ser lido. Não é preciso uma reviravolta na história para reter a atenção do leitor se o livro for bom. Da mesma maneira que não é preciso escrever na capa e na contracapa que se trata do melhor livro do ano. 
    Uma palavra também para a elegância da edição e a beleza da sobrecapa, com imagem do Marcelino Vespeira.
    Nas pesquisas que fiz depois de o ler descobri surpreendida, que foi recentemente transposto para o cinema por Sérgio Tréfaut, com o título Raiva. Apesar de ter estreado em várias salas em outubro de 2018,  já não está nos circuitos comerciais e não consegui encontrá-lo.

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