Papá Goriot, Honoré de Balzac (Edição Amigos do Livro)
Lembro-me de
o meu pai perguntar aos meus irmãos e a mim, se aceitaríamos matar um mandarim,
já velho e sem família, residente algures na China, sem sairmos de casa. Em
troca, receberíamos a sua fortuna. Este dilema era quase sempre acompanhado de
novas condições, ele não só era muito velho como estava muito doente ou ninguém
sentiria a sua falta porque ele era uma pessoa muito desagradável ou mesmo um
criminoso. Penso que a nossa resposta foi sempre negativa. Coloquei esta mesma
questão aos meus filhos que também responderam negativamente.
Pensava que este dilema tinha sido
criado por Eça de Queiroz na novela justamente intitulada O Mandarim. Foi por
isso com surpresa que encontrei neste romance esta mesma questão:
«[...] o que faria no caso
de poder enriquecer ao matar, por sua exclusiva vontade, um velho mandarim da
China sem sair de Paris? [...]
- Não brinques. Vamos se te
provassem que a coisa é possível e que te bastará um gesto com a cabeça que
farias?
- É bastante velho o mandarim?....
Mas, ora! Jovem ou velho, paralítico ou de perfeita saúde, palavra…Diacho! Pois
bem! Não!»
Balzac atribui esta questão a
Rousseau, mas há quem refira que o dilema do Mandarim foi criado por
Chateaubriand, na sua obra Ensaio Histórico, Político e Moral sobre as
Revoluções. Confesso que fiquei ligeiramente desapontada ao descobrir que não
era ao Eça que se devia este problema, sempre atual.
O Papá Goriot (noutras
edições portuguesas aparece como o Tio Goriot, mas não me parece a melhor
opção) vive pobremente numa pensão em Paris, vendendo o pouco que ainda lhe
resta para satisfazer os mais pequenos caprichos das duas filhas, ambas casadas,
e que praticamente o ignoram. Nessa pensão vai instalar-se Rastignac, um jovem ambicioso,
que vem para Paris estudar direito, usufruindo de parte importante das magras rendas
familiares para o efeito. Apesar de ambicioso, Rastignac é um indivíduo correto
e sensível que, juntamente com um estudante de medicina, acompanha os últimos
momentos de Goriot. É quase impossível não pensar no Rei
Lear perante um pai que tudo dá às filhas que, em troca, o ignoram e maltratam.
Papá Goriot decorre
em Paris, na segunda década do século XIX, e dá-nos um retrato impressionante
da alta sociedade parisiense, marcada pela ostentação, pela mentira e pela
falta de quaisquer valores. De assinalar em especial a forma como as mulheres
são retratadas, quase todas mentirosas, falsas, ingratas e profundamente
ambiciosas.
Apesar do
retrato de época, e do tempo decorrido desde a sua publicação, mantém, nalguns
aspetos, uma imensa atualidade, como quando Vautrin, um criminoso que reside na
mesma pensão que Rastignac, afirma:
«São
estas as vossas leis. Não há nelas um artigo que não conduza ao absurdo. (…)
Despreze então os homens e veja as malhas por onde se pode passar através da
rede do Código. O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime
esquecido, porque foi feito com limpeza.»
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