Niketche, Paulina Chiziane (Caminho)

     Niketche foi amor às primeiras palavras, às primeiras páginas. E como todos os livros pelos quais nos apaixonamos, dividi-me entre lê-lo avidamente ou mais lentamente, fazendo durar o prazer. Niketche, como define o glossário no final do livro, é uma dança de amor da Zambézia e Nampula. Mas antes de lá chegarmos, já sabemos pela leitura do livro que "é a dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. (...) Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom."

    Niketche, o livro, o romance, conta-nos uma história de poligamia, mas fala-nos sobretudo das mulheres de Moçambique, do sul, do centro e do norte, e como são física e culturalmente distintas. Mulheres casadas, solteiras, viúvas, novas e velhas. E não conseguimos deixar de nos espantar com a evolução da história que nos é contada, da transformação das infidelidades num casamento polígamo, organizado pelas mulheres e, como uma situação que parece indesejada para as mulheres, pode ser instituída e mantida por elas. Fundamental a solidariedade e amizade que se cria entre elas e que a dada altura se torna mais importante que o casamento. A cadência da história cria mesmo algum suspense, levando o leitor a questionar-se sobre os próximos passos que as mulheres irão dar e as suas consequências. Mas ao mesmo tempo que nos conta a história deste casamento polígamo, Paulina Chiziane reflete sobre a tradição da poligamia e o peso dos invasores, que introduziram a poligamia onde não havia (influência da islamização do povo macua) e a baniram onde havia (influência do cristianismo no povo do sul), sobre a influência da colonização e ainda sobre a educação e o trabalho das mulheres. E reflete sobretudo sobre as mulheres, e neste aspeto, é claramente universal:

    "Nós, mulheres, vivemos num poço silencioso e profundo e julgamos que o céu tem o diâmetro do nosso ponto de mira. Mas um dia descobrimos que as águas que nos cobrem têm a cor do céu. Os nossos sonhos crescem à altura das estrelas. Descobrimos que os gritos dos homens são o marulhar das ondas, não matam. E a grandeza dos homens simples coroa de pavão. Descobrimos que há coisas extraordinárias no mundo proibido que merecem ser provadas Descobrimos que os lírios dos campos têm perfume divino e que o amor verdadeiro tem gosto de liberdade. Por isso voltamos a ser crianças. A pisar com os pés descalços as areias dos caminhos. A saborear as gotas de chuva caindo no fundo da garganta. As cores do arco-íris subindo até à imensidão da terra e do mar. E queremos tudo. O amor. A ilusão. O sonho. O cheiro da terra e o cheiro do mar num só perfume. A velhice e a infância no mesmo ponto. Procuramos em vão a juventude perdida. E procuramos salvar a vida que resta com garras de falcão. Gostamos de fazer poemas de estilo romântico. Receber cartinhas de amor. Ir às quermesses e subir à montanha-russa. Comer algodão doce e lamber sorvetes. Lançar o coração no mar de aventuras. Trocar beijos ao luar. Andar de mãos dadas à beira do mar com o homem amado e contar as estrelas do céu."

   Os homens são mais falados que presentes. Mesmo Tony, o marido polígamo, tem uma presença escassa, e na força que ostenta e que o caracteriza, que resulta da profissão - é polícia - e das inúmeras aventuras que tem, fragiliza-se depois perante as mulheres, chegando mesmo a recusar uma nova mulher que as outras lhe querem impor ("Eu sou um lobo. Tubarão. Falcão. Gosto de debater-me com a presa no acto da caça. Sou macho, ainda.").

    Achei extraordinária a forma como a Autora, Paulina Chiziane, reflete sobre a história e a cultura moçambicanas, o passado colonial ou a situação das mulheres no contexto da história que nos vai contando. A meio do livro percebi que não podia continuar a sublinhar as frases que gostava, porque eram muitas.   

    Niketche ganhou o primeiro Prémio José Craveirinha de Literatura em 2003.

   Um livro a não perder!  

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