Outrora e Outros Tempos, Olga Tokarczuk (Cavalo de Ferro)

     Começo pelo fim: Outrora e Outros Tempos é um livro extraordinário. 

    Outrora, uma aldeia protegida por quatro arcanjos, situa-se na Polónia, mas poderia situa-se em qualquer país ou região da Europa central ou, como é dito a abrir o livro: Outrora é um lugar situado no centro do universo. Ao longo do século XX, três gerações de habitantes de Outrora assistem às duas Guerras Mundiais e à chegada dos exércitos alemão e russo à sua aldeia. Também são três as famílias que vamos acompanhando - as famílias de Genowefa, de Kloska e do Morgado Popielski. Como se se tratasse de um fresco humano em que cada uma destas famílias representa um segmento de uma sociedade, social e economicamente estratificada e fortemente marcada pela sua origem. Em Outrora, como em todas as terras,  há sempre um louco. Em Outrorao louco é Izydor, irmão de Misia, ambos filhos de Genowefa:

    "- Sim, é possível que todas as famílias normais tenham de incluir uma espécie de válvula de descarga da normalidade, alguém que carregue sozinho a cruz das loucuras que todos temos dentro de nós." (pg. 236)

   E há ainda Florentynka que enlouqueceu desapercebidamente. (pg. 55)

   Mas se Outrora é uma aldeia ficcionada, o nome remete-nos imediatamente para o passado. Outrora é um lugar, mas é também um tempo ou uma reminiscência.  E as personagens que a habitam – reais ou não – são tratadas em curtos capítulos, que têm sempre o título de “O tempo de “ seguido do nome. Esta forma de titular os capítulos remete-nos para a ideia do tempo como identificador de uma época e, ao mesmo tempo, foca a narrativa numa personagem, num dado período, exceção feita ao Tempo de Boneca, uma cadela ruiva e peluda, pois como é indicado, o tempo dos animais é sempre o presente. 

   Para além dos residentes em Outrora, há o tempo do Homem Mau que reside nas florestas de Outrora, da Nossa Senhora de Jeszkotle, do Afogado, que é a alma de um camponês, da Casa, do Anjo-da-Guarda, de Jogar e de Deus. Ou o Tempo dos Mortos:

    "Porque só ali, no pós-vida, é que os mortos recuperavam a lucidez, constatando que tinham desperdiçado o tempo que em vida lhes fora dado. Após a morte, descobriam o mistério da vida, mas tal não passava de uma vã descoberta." (pg. 195)

    Outrora é um romance sobre a passagem do tempo e os seus efeitos nas pessoas, nas paisagens e até nas casas e no seu recheio. E também sobre o abandono das aldeias, em que ficam apenas os velhos e os doentes. A imagem de Adelka, neta de Genowefa, a partir de Outrora, com o moinho de café, fecha um ciclo que se iniciara com a oferta do moinho à sua mãe, pelo pai, no regresso da I Guerra.

   Não resisto a roubar a descrição de Misia, já velha, depois de ter sofrido um ataque:

    "Quando olhavam para Misia sentada na cama com as pernas cobertas por um cobertor e o rosto ausente, perguntavam a si próprios como seriam os seus pensamentos. Se estariam rasgados e esfrangalhados como as suas palavras ou se, ocultos nas profundezas da mente, conservariam toda a sua frescura e força ou, ainda, se se tinham transformado em imagens puras, repletas de cores e profundidade. Mas também encaravam a possibilidade de Misia ter cessado de pensar." (pg. 254)

    Uma última palavra para a tradução que me pareceu irrepreensível, a começar pela escolha da palavra Outrora logo no título. Pedi a uma amiga que perguntasse a um tradutor polaco sobre o título original e ele explicou que Prawiek, como é designada a a aldeia no livro, significa mais ou menos muito antigo.

     Olga Tokarczuk ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2018, ano em que também ganhou o Man Booker Prize International.

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Quero ler este livro!

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