Ao contrário do que é habitual,
ultimamente tenho lido vários livros em simultâneo, sobretudo sobre a guerra
colonial, a que se têm somado artigos dispersos que encontro em jornais ou
revistas. Quando comecei a ler este livro, Estranha Guerra de Uso Comum, não
consegui parar, nem interromper para outras leituras. Por coincidência, depois
de o ter lido, fui ouvir o Autor, Paulo Faria, falar sobre o livro no Teatro
Municipal Joaquim Benite, no âmbito das conversas com o público, a propósito da
encenação da peça “
Um gajo
nunca mais é a mesma coisa”.
Ao ouvi-lo tive a sensação oposta à que
tinha tido enquanto lia o livro. No livro pareceu-me que ao procurar o pai
tinha encontrado a guerra (“a guerra do pai que também era a dele” como refere
na contracapa) enquanto que ao ouvi-lo senti que quando falava com os antigos
camaradas de armas tinha, de alguma forma, encontrado o pai.
Um parêntese antes de falar sobre este
livro, que é mais um sobre a morte do pai. Durante algum tempo colecionei
títulos de livros e nomes de autores sobre este tema. Sobre a morte de mãe
conheço apenas um, de Simone de Beauvoir, «Uma morte suave». Admito que possa
haver muito mais livros escritos sobre a morte da mãe, que desconheço, mas esta
quase ausência surpreende-me. Será que a mãe permanece mais próxima e por isso
mais cognoscível, não havendo necessidade de os filhos escreverem sobre ela
após a sua morte para a entenderem? Em a Estranha Guerra de Uso Comum, o Autor também
fala sobre a mãe e sobre a sua morte, mas não se interroga sobre ela, sobre o
seu passado ou as razões pelas quais agiu de determinada forma. Ela, a mãe,
aparece apenas quando já está muito doente e conta ao filho como o pai a deixou
e deitou fora todas as cartas e aerogramas que tinha escrito e recebido. Dela, apesar
de ter morrido quando o filho era mais novo, não fala com a nostalgia que se sente
quando fala do pai:
«(…) Morreste, não queria que tivesses morrido,
prolongo a tua existência mais um bocadinho falando de ti».
Mas este livro não é apenas sobre a morte
do pai, como aliás se percebe pelo título e pela capa. O título foi extraído de
um poema de Matilde Rosa Araújo, apresentado parcialmente no início do livro, juntamente
com uma citação de Vassili Grossman, que me parece refletir na perfeição este
livro:
«A literatura não é um eco. É à sua maneira
que fala da vida e dos seus dramas.»
Estranha Guerra de Uso Comum está dividido
em dez entrevistas ou encontros entre Carlos - o filho e narrador - e homens
que estiveram com o pai dele na guerra, intercaladas por dez cartas ao pai.
Cada um dos homens tem memórias distintas quer da guerra, quer do pai, médico
do batalhão. Alguns chegam a confessar não gostar dele ou mal o ter conhecido, mas
há memórias que todos partilham, como o Artur ou o guerrilheiro que foi morto a
sangue-frio depois de terem passado dois dias a segui-lo, porque ele dissera
saber onde se situava uma base da FRELIMO, ou as mulheres ou o soldado que se matou.
Analisa detalhadamente fotografias que o
pai guardara num envelope, que identificara como sendo da guerra de África. Cinquenta
e uma fotografias e um negativo, que leva consigo sempre que vai ao encontro daqueles homens, bem como o uniforme que o pai mandou fazer para o Artur – a
criança que protegeu durante o período da comissão
De cada um dos camaradas de armas do pai ficamos a saber o que eram
antes de partir e como regressaram. E do que pensaram enquanto lá estavam. Nas
cartas ao pai fala da vida em comum, da infância que não foi feliz («Há
infâncias que nos deixam com uma provisão de tristeza para a vida inteira»), do
regresso de África, do divórcio dos pais, dos avôs paternos, da infância do pai
no Faial e também da doença que o matou. A forma como descreve a doença é tão
extraordinária que pensei que ilustrava na perfeição o que aconteceu – acontece
- com a minha mãe:
«(…) Foi-se fazendo escuro aos poucos, uma
nesga de cada vez, cada dia era como um quadradinho naqueles catálogos de
tintas que consultamos antes de mandar pintar uma divisão (…) a mudança é quase
impercetível, e os teus dias passaram a ser assim, cada dia era um quadradinho
cinzento, ligeiramente mais cinzento do que o anterior, ligeiramente menos
cinzento do que o seguinte, indistinguíveis a olho nu, mesmo com muito sol. E o
catálogo parecia nunca mais acabar, desdobrava-se em harmónio e havia sempre
mais outra dobra, e outra, e outra.»
Apesar da guerra ser omnipresente em todo o
livro, Estranha Guerra de Uso Comum é, sobretudo, uma carta de amor ao pai. Como
refere na última carta:
«(…) De cada vez que me metia no carro para
ir ao encontro daqueles homens, tu renascias um bocadinho, era como se eu fosse
outra vez à casa de saúde visitar-te, já perto do fim.»
***
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