Amor, Jorge de Sena (Guerra e Paz)

Amor

     Amor foi-me oferecido por uma amiga, e serviu para contrariar mais uma vez a ideia do Miguel Esteves Cardoso, segundo a qual os leitores raramente gostam dos livros que lhes são oferecidos (Confesso que quando li a crónica, concordei com ele, e lembrei-me de livros que tenho empilhados na prateleira mais baixa da estante, que me foram oferecidos, e que nunca passei das primeiras páginas. Mas todas as regras têm exceções). 

    Gostei muito de ler esta definição/análise de Amor, que, conforme explica o Editor, foi escrita há 52 anos para integrar o Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, concebido por João José Cochofel em 1969. Surpreendeu-me o arrojo da abordagem sobre o amor que Jorge de Sena divide em duas partes, numa primeira escreve sobre o amor do ponto de vista antropológico, filosófico, sociológico e também do ponto de vista das religiões e, numa segunda parte, sobre o amor na literatura portuguesa:

     Começa assim por fazer uma “história” do amor. Refere os tabus ligados sobretudo ao cristianismo para os quais o ato sexual só seria legítimo e normal se dirigido para a propagação da espécie; que interdita o incesto e protege a estabilidade da família (visando a conservação da propriedade) para concluir que se há “pecado original” da natureza, “está em ser possível, ou ter sido possível, estigmatizar-se qualquer aspeto da vida sexual, e tal estigma ter tido consequências profundas na psicologia individual ou coletiva.”

     Escreve e reflete sobre a transição do matriarcado ao patriarcado e a consequente  ascendência do macho sobre a fêmea, a consciência da ambiguidade sexual do masculino-feminino e sobre a pornografia que distingue da obscenidade. Neste ponto, não resisto a transcrever o que escreve sobre mulheres e pornografia:

     “O facto de habitualmente insistir-se em que a mulher é mais recatada do que o homem nessas matérias não resiste a qualquer franco relato de uma delas quanto ao que as outras dizem. E se tem sido observado que à mulher, mais do que ao homem, a pornografia não interessa, ou que muitas se envergonham de conversas «impróprias» num grupo misto, isso em grande parte resultará de ela ter assumido a imagem de um ideal de «pureza» ou de reticência perante o sexo, que uma moral predominantemente de posse masculina lhe impôs nas sociedades antigas e modernas, em que tais estruturas tenham prevalecido.”

   Sobre o Amor na literatura portuguesa começa com os cancioneiros e avança cronologicamente, analisando, a propósito de Bernadim Ribeiro, a feminilidade da literatura portuguesa apesar da masculinidade dos seus autores. Apresenta, penso, uma perspetiva única sobre Camões, a quem reconhece “uma tolerância infinita, um sentido da liberdade erótica, uma consciência da dignidade última do prazer sensual qualquer que ele seja, que quase não tem par na literatura portuguesa, e que raras vezes, no mais profundo sentido, terá atingido a audácia que tem nele.”

    Também a análise que faz da personalidade e da escrita de Sá Carneiro são (ou foram para mim) absolutamente surpreendentes: "um menino bem nascido, criado sem mãe e com dinheiro, e que sucumbiu adolescentemente ao drama burguês de dever dinheiro a prostitutas, ou de não o ter para as mais caras que desejasse."

    Sobre as mulheres escritoras de finais do século XIX e século XX, e exemplificando com Florbela Espanca, refere que a sociedade portuguesa admitia que a mulher ascendesse a certa independência, "mas não aceitava que a mulher fosse sexualmente igual ao homem".

     A forma como termina o verbete sobre o Amor, que Jorge de Sena enviou para publicação em 1971, é uma análise tão certeira do modo de ser português que não resisto a transcrever integralmente:

    “Mas sucede que, no amor e no sexo, como em tudo, se requer, menos do que tempo, espaço, no sentido de dimensão psicossocial da liberdade erótica – e isso é incompatível com as quatro paredes da incestuosa aldeia mental que os portugueses transportam consigo pelo mundo, ou erguem à sua volta no país, e em que a liberdade do sexo (bem maior que a de outros povos) se reduz a uma espécie de conivência clandestina. São as duas faces inevitáveis de uma moral de senhores e de criados, que mutuamente se servem mas não são servidos, e que ficaram criados, quando deixaram de ser senhores”.

    Magistral.

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