Manhã Submersa, Vergílio Ferreira (Sociedade de Expansão Cultural)

Manhã Submersa
    À medida que ia lendo Manhã Submersa ia-me recordando das personagens, dos cenários, do ambiente. Do horror de um jovem (criança, ainda) estar encerrado num seminário sem possibilidade de escolha. Do desejo ou sonho que acalentava de um dia ter uma mulher. Da consciência de que  apenas dele dependia a mãe e as irmãs terem uma vida melhor.  Do fim da infância:
    "Mas em quaisquer circunstâncias, havia sempre, nos meus olhos, um adeus infeliz para os caminhos da serra, para o pobre cadáver da minha infância." (pg. 96)
    Relembrei também a solidão que o acompanhava, a perda do amigo e o acidente que o conduzirá à liberdade.
     A história de António dos Santos Lopes não foi única ou rara, foi a história de muitos meninos nascidos e criados em meados do século passado, como o próprio Autor. Foi também a história do meu avô paterno, que desistiu de ser padre já homem feito, mas que tinha o seminário marcado nos gestos e nos hábitos. Na dificuldade de expressar afeto. 
    Mas não é apenas sobre a vida dos meninos no seminário que Manhã Submersa fala. Através deles conhecemos a vida nas aldeias do interior, a extrema pobreza, a fome, o analfabetismo, a total ausência de oportunidades. A dependência da Igreja e o servilismo para com as famílias ricas. As mulheres vestidas de negro. As cabeças sempre cobertas de lenços negros.
    Gostei muito de reler e de redescobrir este romance de Vergílio Ferreira, e a sua escrita  expressiva:
    "Então, abruptamente, precipitou-se sobre mim uma torrente de lama e fiquei submerso. Tinha as mãos cheias de cinza, um terror de vergonha no fundo do coração. E corei, e sorri de lástima e de infâmia. " (pg. 70)
    Manhã Submersa, escrito durante o fascismo, pode ser lido também como um hino à liberdade ao retratar o seminário como um lugar de prisão e impeditivo da liberdade:
    "Segue o teu caminho de liberdade a prumo. E que sofras e que roas as pedras do teu destino ruim. Mas é teu, amigo. Pertence-te como os ossos e os dentes. Aguenta de peito aberto, meu irmão. Aguenta e canta, porque valeu bem a pena."(pg. 120)
    Manhã Submersa foi publicado pela primeira vez em 1954, nesta edição com as extraordinárias ilustrações de António Charrua.

     Manhã submersa foi adaptado ao cinema por Lauro António, em 1980, e talvez seja por causa do filme que a minha memória deste romance é tão visual. O próprio Vergílio Ferreira participou no filme na figura do Reitor do Seminário.

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