O abismo do esquecimento, Paco Roca / Rodrigo Terrasa (Ala dos Livros)


    Sempre acreditei no poder terapêutico da leitura, mas compreendi agora que em circunstâncias extremas os livros são um fraco lenitivo. As letras, as palavras, as frases, as páginas sucedem-se e não fazem sentido ou depois de lidas são esquecidas ou ficam a pairar sem sentido.
    Mas numa noite de insónia desisti de tentar dormir e vim para a sala ler. Este era o livro que estava à mão. Não tenho o hábito de ler o que atualmente designam de novelas gráficas, mas só consegui parar de ler O abismo do esquecimento quando o concluí.
    Ainda me lembro da aprovação da lei da memória histórica, em Espanha, em 2007. Até então, não percebia como tinha sido possível a transição democrática no país vizinho, sem, pelo menos, o reconhecimento de direitos às vítimas do franquismo e o apagamento dos sinais óbvios do regime.
    O abismo do esquecimento conta a história de Pepica, cujo pai fora condenado à morte, fuzilado e enterrado numa vala comum e que não desiste de o encontrar, exumar o cadáver e enterrá-lo juntamente com o corpo da sua mãe, como lhe tinha prometido. Pepica guarda uma madeixa de cabelo do pai - José Celda Beneyto - que lhe entregara o coveiro - Leoncio Badia Navarro -, ele também republicano e que fora obrigado pelo regime a enterrar os «seus» mortos.  Leoncio vai guardando pedaços dos mortos que enterra para que um dia possam ser identificados e, numa luta contra o esquecimento, quando pode, junto dos cadáveres enterra pequenos frascos com os seus nomes. É a sua filha Maruja que preserva a memória do pai falecido em 1987.
    Mas entre a história de Pepica, de Maruja e de seus pais há muitas outras histórias. Emocionou-me sobretudo a luta das mulheres - mulheres, mães, irmãs e filhas - para que os seus mortos não ficassem numa vala comum e para lhes prestarem homenagem. Impressionante a forma como acompanham o dia da sua execução para depois irem ver os seus cadáveres ao cemitério.
    Juntamente com as suas histórias pessoais, ficamos a saber como o regime franquista, depois da guerra ter acabado, assassinou milhares de pessoas, cujos corpos foram enterrados em valas comuns. A perseverança de Pepica e o facto de ter encontrado o cadáver do pai, levou muitas outras pessoas a seguirem o seu exemplo e a exigir a abertura das valas e identificação dos corpos.
    A forma como está construída a narrativa é extraordinária, não deixando de contar a história de um morto, cujo corpo foi identificado - o nome estava numa pequena garrafa - e de que há uma fotografia  - no cartão do partido - mas de que mais nada se sabe, pois todos os seus familiares já morreram:
    «Mas no futuro ninguém me esperava, os que me amavam já cá não estão e ninguém me recorda.» 
    Ficam os leitores de O abismo do esquecimento a conhecer o seu nome, a sua cara e um pouco da sua história. Para que não caia no abismo do esquecimento.

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