Biografia involuntária dos amantes, João Tordo (Alfaguara)


    Comprei este livro na Feira do Livro numa tarde em que o João Tordo se encontrava no stand da editora. Tinha alguma curiosidade de ler este autor, devido a algumas críticas que tinha lido mas também na expetativa de saber como escrevia o João, que conhecia há muitos anos através das palavras de Ary dos Santos cantadas por Fernando Tordo.
    E começo por referir que o João é um digno herdeiro desse património. O livro está muito bem escrito. Não resisti aliás a roubar algumas frases:
    "Foi a única mulher para quem olhei e que consegui imaginar velha", afirmou. "Quanto mais a observava, mais era capaz de retratar a metamorfose que lhe aconteceria ao rosto, e ao corpo, durante os próximos cinquenta anos". (...) nunca se encontra o amor porque ele não é passível de ser encontrado. Que não nos acontece quando queremos mas quando estamos distraídos ou adormecidos.
(...)
    Dobrar uma esquina significava escolher um destino, dobrar a esquina seguinte significava escolher um outro, radicalmente diferente, que alteraria o decurso da nossa existência. Nenhum livro nos poderia ensinar a descobrir esquinas, concluí. A literatura era o que acontecia ao seu autor quando se detinha, permanecendo imóvel, enquanto todos os outros continuavam a dobrar esquinas: os amigos, a família, todos os desconhecidos do mundo. Um dia também eu estaria cansado de dobrar esquinas e de me perguntar, a todos os momentos, se dobrara a esquina certa ou se deveria voltar para trás.
    O título é também belíssimo e além disso rigoroso, uma síntese perfeita do livro. Com frequência encontramos títulos que não têm ligação ao livro ou têm uma ligação tão ténue que é difícil percebe-la, como se fossem um capricho do autor.
     A história é fluente e agarra-nos desde o início, encadeando vidas e histórias, a do narrador e da sua separação e da difícil relação com a filha, do mexicano Miguel Saldaña Paris e de Teresa, a mulher que amou  (Dedica-te a amar as coisas certas em vez das coisas erradas.). Por Saldaña Paris, internado no hospital depois de ter tentado decepar a mão, mas também por si, o narrador parte numa viagem que o leva a Lisboa, a Londres, ao Canadá, numa busca pela vida de Teresa de forma a preencher o que não ficou escrito, nem dito, como se ao completar o puzzle tirasse o seu amigo do hospital e lhes devolvesse sentido à vida.
     A parte mais frágil do livro é, em meu entender, justamente o diário de Teresa, porque dificilmente poderia ser o detonador de todas as situações subsequentes e padece até de algumas incongruências.
     Curiosamente o autor cita no início do livro Javier Marias e em vários momentos da leitura deste livro me lembrei deste outro autor.

***

     

Comentários

  1. Gostei muito deste livro. Tal como a minha mãe escreveu, agarra-nos desde o princípio e está muito bem escrito. Apesar de ser um livro duro e repleto de desventuras - a vida estagnada do narrador é quase uma bênção, quando começamos a conhecer a história de Saldaña Paris e, pior ainda, a de Teresa. Em meu entender, nem é tanto o aparecimento do manuscrito de Teresa, por si, que leva ao desencadear de todas as consequências e ao despoletar da obsessão do narrador pela história dos amantes. É o aparecimento do manuscrito na sequência da frase dita pela sua colega do trabalho na rádio, acerca de Saldaña Paris: "Nunca conheci ninguém tão triste em toda a minha vida. (...) Tão genuinamente triste, sabes? Como se todo ele tristeza, como se fosse feito disso. (...) Desgosto de amor. (...) Só pode ser (...). Ou perdeu o juízo ou perdeu a mulher da sua vida (...) de vez. Perdidinha para sempre. (...)O que me parece é que ele veio aqui para morrer." E, com o aparecimento do manuscrito, Saldaña Paris deixa de conseguir lidar com o mundo real e é como se a sua melancolia fosse transferida para o narrador que, por ambos, enceta uma viagem pelo passado. De sublinhar também a compaixão que transborda no final do livro, quando a fim de libertar o amigo, o narrador prefere ocultar os horrores que descobriu. E somos presenteados com uma espécie de um final feliz. Uma nota de esperança. A ler.

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