Tanta Gente, Mariana - As palavras poupadas, Maria Judite Carvalho (Minotauro, GrupoAlmedina)

   
    Redescobri recentemente a Maria Judite de Carvalho através de uma edição, já com algum tempo, das suas crónicas, com o título Este Tempo, e soube entretanto que  a sua obra completa está a ser publicada pela Almedina, através da chancela Minotauro. Este é o primeiro volume dessa coleção e reúne 17 contos, entre os quais Tanta Gente, Mariana e As Palavras Poupadas.
    Gosto muito de ler contos, sobretudo quando à história se junta a qualidade da escrita, como acontece neste caso. Mas nestes contos há ainda a inocência da narração, desprovida de truques que encontramos em muito autores, destinados a manterem os leitores atentos, surpreendendo-os com voltas e reviravoltas a meio, ou fins inesperados.
    Os contos de Maria Judite Carvalho são pequenas histórias de vida ou episódios do quotidiano, com pessoas comuns. Não se destinam a surpreender o leitor. São apenas histórias que quase nos são sussurradas ao ouvido, mas que nos tocam profundamente. Comovem. Na sua maioria, vozes femininas. Mulheres sozinhas, abandonadas, tristes. Por vezes ridículas. Algumas violadas, agredidas, mas que também matam. Os homens que nos são dados a conhecer nalgumas destas histórias também sofrem e sonham com outra vida, com outra mulher, com o amor. Querem partir, fugir da vida que levam.

    Tanta Gente, Mariana é o único conto a ser contado na primeira pessoa, e é sobretudo sobre a solidão. Enquanto lia, roubava frases, mas só queria ter sido eu a escrevê-las:
 
   «Pensar na esperança, que coisa imbecil! Até dá vontade de rir. Na esperança... Sempre há gente... E ela metida como areia nas pregas e nas bainhas da alma. Passam anos, passam vidas, aí vem o último dia e a última hora e o último minuto e ela então aparece a tornar inesperado aquilo por que esperávamos, a fazer o que já era amargo ainda mais amargo. A tornar mais difíceis as coisas.»

   Acabo com o início de um conto A Sombra da Árvore:

    «Não seria capaz de saber, mesmo pensando longamente nisso, qual o dia em que o vento deixara esquecido dentro dele o minúsculo grão de pólen. Não dera também - estava convencido de que era assim mas não absolutamente certo - pelo início da germinação. Qualquer coisa, entretanto, se criara a pouco e pouco e lentamente deitara raízes invisíveis mas bem vivas, que haviam crescido e cada dia se tinham ido agarrando com mais força. Ele, no entanto, continuava sem ver a planta, ou talvez simplesmente sem a olhar. Só quando não houve mais nada em redor e ela ficou recortada no céu, grande como uma árvore, a escurecer tudo (ou a proteger tudo, quem sabe, a prometer a segurança da sua sombra), só nessa altura o velho Firmino a encarou de frente. Sem espanto nem medo. Mas com uma certa amargura. A amargura das pessoas a quem é permitido acolherem-se a um abrigo e o fazem porque não têm outra alternativa. Cá fora é o sol que queima ou o frio que gela.»

    Impossível resistir.

    Uma nota apenas para a belíssima imagem da capa, reprodução de um quadro da autora, bem como os desenhos de caras femininas no início de As Palavras Poupadas (Prémio Camilo Castelo Branco).

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