A sonata de Kreutzer, Lev Tolstoi (Relógio d' Água)

Lev Tolstoi "@ Clube de Leituras"
    Quando escreveu A sonata de Kreutzer, Lev Tolstoi já tinha escrito os que são considerados os grandes livros da sua vida,  Guerra e Paz (1869), Anna Karénina (1877) e A morte de Ivan Ilitch (1886), a que aquele se veio juntar. Apesar de ter apreciado muito esta obra é inquestionavelmente um livro escrito no período que corresponde à segunda fase da sua vida. Conforme refere Vadimir Nabokov, citado na badana, em «finais de setenta, já passado dos quarenta anos, a sua consciência triunfou: o ético ultrapassou o estético e o pessoal, e levou-o a sacrificar a felicidade da mulher, a pacífica vida familiar e a sublime carreira literária, em nome daquilo que considerava uma necessidade moral: viver de acordo com os princípios da moralidade racional cristã - a simples e austera vida da humanidade em geral, em vez da empolgante aventura da arte individual.»
    Se n' A morte de Ivan Ilitch a reflexão - a interrogação  - é sobre a morte e a  vida, n' A sonata de Kreutzer é sobre o casamento. Contudo, já no primeiro era também aflorada esta questão e com o mesmo desencanto:

    «Restavam apenas os raros momentos de afeição dos esposos, mas que eram breves. Eram ilhotas onde eles acostavam por algum tempo, mas depois voltavam a partir para o mar da hostilidade velada que se manifestava no alheamento um do outro.»

    N' A sonata de Kreutzer a ação passa-se toda numa viagem de comboio. O livro é narrado na primeira pessoa que  naturalmente identificamos com o próprio autor, contudo, é da boca do seu interlocutor que ouvimos os pensamentos de Tolstoi sobre o casamento, as mulheres, a infidelidade, os ciúmes...
    O mote é logo no início dado por um outro passageiro, advogado, que fala no número elevado de divórcios. Na carruagem segue um passageiro que evita comunicar ou apresentar-se aos outros passageiros, até que se apresenta como Pózdnichev, aquele que matou a mulher. E conta então a sua história, como conheceu a mulher, o casamento, os filhos, a mudança para a cidade. As discussões constantes, as quase ruturas, os ciúmes e por fim a morte dela. A violentíssima e trágica morte da mulher devido aos ciúmes que ele sente.
    A dada altura, quando fala das mães das jovens que procuram marido para as filhas, senti que estava a ler os pensamentos de algumas personagens masculinas que povoam os romances de Jane Austen.
    É quase difícil admitir que gostei do livro, da forma como está estruturado e escrito, porque mesmo sabendo da distancia temporal que justifica um outro olhar sobre a história, não deixa de ter - transmitir - uma perspetiva negativa sobre as mulheres e uma visão arcaica sobre o casamento e o relacionamento entre os dois sexos. Mas gostei...

    O livro tem o nome d' A sonata de Kreutzer de Beethoven, música que a mulher de Pózdnichev toca com um violinista, desencadeando os ciúmes do marido. 
    Não resisto a roubar o que diz da música:

    «O que é a música? O que é que ela nos faz? E porque é que faz o que faz? Dizem que a música provoca um efeito sublime na alma....Mentira, absurdo! Provoca um efeito, um efeito terrível (estou a falar de mim), mas não sublime. Não age na alma de modo sublime nem humilhante, mas de modo excitante. Como lhe hei-de explicar? A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu: a música parece que me faz sentir o que na verdade não sinto, que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso. Explico-o assim: o efeito da música é como o do bocejo ou do riso; não tenho sono mas bocejo quando olho para alguém a bocejar; não tenho motivos de riso mas rio quando ouço alguém a rir-se.
    A música transfere-me de imediato para o estado de espírito do músico quando a compôs. Fundo-me na alma dele e, juntamente com ele, transporto-me de um estado para o outro, mas não sei porque o faço.» (pg. 90)
    

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