A transparência do tempo, Leonardo Padura (Porto Editora)
Apesar de ser mais um livro protagonizado por Mario Conde, que é contratado
por um antigo colega para recuperar uma estátua de uma virgem negra,
esta é de facto a parte menos importante da história, quase só o pretexto para
viajarmos no tempo e no espaço, sendo o elo de ligação uma estátua da Virgem negra. Viajamos entre Cuba, no presente (2014), a guerra civil de Espanha (1936), a independência catalã, as guerras de Aragão (1472), até às batalhas dos Templários contra os infiéis, em Tripoli (1291).
E simultaneamente acompanhamos as reflexões do Mario Conde - alter ego do autor - sobre a idade, o envelhecimento e a decisão de permanecer ou abandonar Cuba. O ambiente permanece o mesmo, a relação com Tamara, os amigos, o cão Basura II, as faltas e a escassez de dinheiro. Ao lado de Mario Conde existe Antoni Barral - que sempre que se vê numa situação capaz de lhe revirar a vida, acaba sempre a olhar os pés - que foge de Espanha no início da guerra civil e que viaja até Cuba e que séculos antes acompanhou o seu cavaleiro doente, mas é ele que encontra a morte, e antes ainda era ele que fugia da perseguição feita aos membros da Ordem do Templo, como se o tempo fosse transparente. E é Antoni Barral que em 2014 organiza os elementos de que dispõe e escreve a história e que batiza as personagens com o mesmo nome:
"(...) Uma e outra vez, um ser nascido das tuas obsessões, que dotaste de atitudes, de pensamentos precisos, tão próximos da tua vida real e de escritor que as fronteiras entre o que criaste e o que viveste se te foram confundindo (...)".
É, aliás, a complexidade das personagens, a atualidade dos temas ainda que mesclados com temas históricos, a partilha de reflexões e de algumas perplexidades que justificam o interesse das obras deste autor, sejam policiais, como Um passado perfeito ou romances como O homem que gostava de cães. Leonardo Padura é o único escritor de policiais que no meio de uma investigação envolve as lutas contra os infiéis na Idade Média e reflexões absolutamente atuais sobre as guerras religiosas:
"(...) Que enquanto nós, cristãos, matamos muçulmanos, os muçulmanos matam e matarão cristãos, e que uns e outros depressa nos mataremos diante desta cidade e nesta terra, dizem que santa, e que continuaremos a fazê-lo pelos séculos dos séculos sempre em nome da fé mas, na realidade, por causa das suas riquezas, pelo afã de poder?" ou
"(...) O que descobrimos sobre a manipulação do medo e a essência da tortura aplicar-se-á pelos séculos dos séculos, nas futuras sociedades que vierem..."
Gostei muito desta viagem no tempo e no espaço e dos passeios em Cuba, país que ele próprio vai descobrindo surpreendido. E como nas leituras anteriores, não consegui deixar de roubar algumas frases:
"(...) Pensar que a História nos esqueceu equivale a ignorar que, acima da nossa vontade, fazemos parte de uma realidade ingovernável que nos envolve. E pensar que nos salvaremos dela é um impossível: não interessa que estejamos no que parece ser um meandro perdido da corrente, porque na altura de um dilúvio tudo se inunda, tudo se agita, e os caudais alteram-se."
E quase a acabar:
"(...) E de que aquilo que te desfazias pelo facto magnífico de o fixares e de o veres depois ganhar distância, como um navio funerário ao pairo, passava a ser um fantasma cujos contornos se te confundiam como se visses a História e o tempo através do véu transparente de uma lágrima."
E simultaneamente acompanhamos as reflexões do Mario Conde - alter ego do autor - sobre a idade, o envelhecimento e a decisão de permanecer ou abandonar Cuba. O ambiente permanece o mesmo, a relação com Tamara, os amigos, o cão Basura II, as faltas e a escassez de dinheiro. Ao lado de Mario Conde existe Antoni Barral - que sempre que se vê numa situação capaz de lhe revirar a vida, acaba sempre a olhar os pés - que foge de Espanha no início da guerra civil e que viaja até Cuba e que séculos antes acompanhou o seu cavaleiro doente, mas é ele que encontra a morte, e antes ainda era ele que fugia da perseguição feita aos membros da Ordem do Templo, como se o tempo fosse transparente. E é Antoni Barral que em 2014 organiza os elementos de que dispõe e escreve a história e que batiza as personagens com o mesmo nome:
"(...) Uma e outra vez, um ser nascido das tuas obsessões, que dotaste de atitudes, de pensamentos precisos, tão próximos da tua vida real e de escritor que as fronteiras entre o que criaste e o que viveste se te foram confundindo (...)".
É, aliás, a complexidade das personagens, a atualidade dos temas ainda que mesclados com temas históricos, a partilha de reflexões e de algumas perplexidades que justificam o interesse das obras deste autor, sejam policiais, como Um passado perfeito ou romances como O homem que gostava de cães. Leonardo Padura é o único escritor de policiais que no meio de uma investigação envolve as lutas contra os infiéis na Idade Média e reflexões absolutamente atuais sobre as guerras religiosas:
"(...) Que enquanto nós, cristãos, matamos muçulmanos, os muçulmanos matam e matarão cristãos, e que uns e outros depressa nos mataremos diante desta cidade e nesta terra, dizem que santa, e que continuaremos a fazê-lo pelos séculos dos séculos sempre em nome da fé mas, na realidade, por causa das suas riquezas, pelo afã de poder?" ou
"(...) O que descobrimos sobre a manipulação do medo e a essência da tortura aplicar-se-á pelos séculos dos séculos, nas futuras sociedades que vierem..."
Gostei muito desta viagem no tempo e no espaço e dos passeios em Cuba, país que ele próprio vai descobrindo surpreendido. E como nas leituras anteriores, não consegui deixar de roubar algumas frases:
"(...) Pensar que a História nos esqueceu equivale a ignorar que, acima da nossa vontade, fazemos parte de uma realidade ingovernável que nos envolve. E pensar que nos salvaremos dela é um impossível: não interessa que estejamos no que parece ser um meandro perdido da corrente, porque na altura de um dilúvio tudo se inunda, tudo se agita, e os caudais alteram-se."
E quase a acabar:
"(...) E de que aquilo que te desfazias pelo facto magnífico de o fixares e de o veres depois ganhar distância, como um navio funerário ao pairo, passava a ser um fantasma cujos contornos se te confundiam como se visses a História e o tempo através do véu transparente de uma lágrima."
***
Comentários
Enviar um comentário