a Peste, Albert Camus (Edição Livros do Brasil)

   "(...) Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas."
   
    Há anos passei por uma fase Camus. Li todos os livros dele que encontrei, bem como análises e recensões sobre a sua obra. 
    Quando a pandemia se instalou só me lembrava deste livro, A Peste. Mal comecei a lê-lo, surpreendeu-me a atualidade e a exatidão do mesmo. Não sei como poderei definir de outra forma, mas se é inevitável que numa situação de epidemia/pandemia as autoridades sanitárias reajam de uma determinada forma, isolamento das pessoas doentes e das áreas contaminadas, afetação de espaços públicos para albergar os doentes, não deixa de surpreender que, quase passo a passo, a reação das pessoas seja também similar, mal grado a distância do tempo e do espaço. A Peste decorre em Orão, na Argélia, após a segunda guerra mundial.
    "(...) Com efeito, o anúncio de que a terceira semana de peste contara trezentos e dois mortos não falava à imaginação. Por um lado, talvez nem todos tivessem morrido de peste. Por outro lado, ninguém na cidade sabia quantas pessoas morriam habitualmente por semana. A cidade tinha duzentos mil habitantes. Ignorava-se se esta proporção de mortes era normal. É mesmo o género de precisões com que nunca nos preocupamos, apesar do interesse evidente que elas apresentam. Ao público faltavam, de algum modo, pontos de referência. Foi só com o tempo, ao verificar o aumento constante das mortes, que a opinião tomou consciência da verdade. Com efeito, a quinta semana deu trezentos e vinte e um mortos e a sexta trezentos e quarenta e cinco. A subida, pelo menos, era eloquente."
    O doutor Rieux, que no final se revela o narrador (embora se socorra das anotações de Tarrou), é também o protagonista. Através dele vamos conhecendo a situação, desde o aparecimento dos primeiros ratos mortos e dos sintomas nas pessoas, visitando os doentes e acompanhando a evolução da situação e a expetativa de um tratamento e cura.
    Há quem considere que A Peste é uma metáfora para a subida do III Reich ao poder ou para a 2.ª Guerra Mundial, mas, talvez pelo período que vivemos, só consigo associá-lo a uma situação de epidemia/pandemia. Até a passagem de uma preocupação ou consciência da situação de forma restrita, apenas por parte dos médicos, para a sua generalização ("A partir deste momento, pode dizer-se que a peste se tornou o caso de todos nós."), através da intervenção dos poderes públicos e a determinação de várias medidas sanitárias, incluindo o isolamento da cidade. Também os cidadãos passam de uma situação de alheamento ou ignorância, para o receio e o desespero:
    "(...) A peste não era para eles mais do que uma visita desagradável, que havia de partir um dia, já que tinha vindo. Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma da sua vida e em que esqueceriam a existência que, até agora, tinham podido levar. Em suma, estavam na expetativa."
     Confesso que me custou muito lê-lo. Não sei se foi da situação de isolamento social que, paradoxalmente, nos concede mais tempo para ler de que pouco beneficiamos, pelo menos no meu caso, ou por ver o retrato da situação atual e o tempo (e mortes) que levou até à retoma da normalidade. Há momentos do livro particularmente dolorosos, como a morte do menino, filho do juiz. Penso que é através da dor desta criança, acompanhada de perto pelo médico e pelos amigos, que Camus transmite toda a impotência perante a doença.
    Magistral, como nos outros livros de Camus, é o retrato humano que faz, a partir de algumas personagens que terminam por evidenciar uma solidariedade e capacidade de entrega inimaginável noutras situações, mesmo que sob a capa do altruísmo esteja a necessidade de afirmação e justificação da sua própria existência.
    N'A Peste quase não existem personagens femininas. Aparecem apenas de forma secundária, primeiro a mulher de Rieux que, por motivos de saúde, sai da cidade antes da epidemia, ou a mulher por quem o jornalista está apaixonado e que também não está em Orão. De resto as outras mulheres são apenas mães ou mulheres de doentes por quem velam. A única exceção é a mãe de Rieux, presença discreta e quase silenciosa, mas a quem se sente a forte ligação e admiração. Dela dirá Tarrou "A minha mãe era assim; eu apreciava nela o mesmo retraimento e foi a ela que sempre quis juntar-me. Há oito anos não posso dizer que ela tenha morrido. Diluiu-se apenas um pouco mais que de costume e, quando me voltei, já lá não estava."
    Vou acabar roubando um excerto feliz do penúltimo capítulo:
    "(...) Caminhando sempre apertado de todos os lados, interpelado, chegava a pouco e pouco a ruas menos apinhadas e pensava que não era importante que essas coisas tenham um sentido ou não, mas que é preciso ver apenas a resposta dada à esperança dos homens.
    Ele sabia agora qual era essa resposta e compreendia-a melhor nas primeiras ruas dos arrebaldes, quase desertas. Aqueles que, cientes do pouco que eram, tinham apenas desejado voltar à casa do seu amor, eram por vezes recompensados."
   
***

Comentários

  1. Li depois no Jornal Tornado, num artigo sobre artistas que criaram obras primas em isolamento, o seguinte:
    O escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), por sua vez, experimentou o isolamento por conta da tuberculose que tinha desde os 17 anos. “Essa distância imposta pela doença vai também ser imposta pela Segunda Guerra e o escritor vai se habituar a construir um espaço solitário”, afirma Raphael Araujo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Camus. “Durante uma parte importante da redação de A Peste, Camus está sozinho e recluso. Ele projeta parte do sentimento de isolamento dos franceses nos prisioneiros da peste na cidade de Orã, onde se passa a história.
    O livro, produzido nessas circunstâncias e logo após o surto de peste bubônica que atingiu a Argélia, em 1944, voltou à lista de livros mais vendidos nas últimas semanas na Europa.

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