Luís Sepulveda, que escrevia romances de amor

    Li muitos dos livros de Luís Sepúlveda, quase todos nos anos noventa do século passado. Dito assim, parece uma eternidade, contudo retenho a lembrança da maioria deles. Reparo agora que a edição de "O velho que lia romances de amor" é de 1999, e é a 14.ª. Quantas mais terá havido? De outros livros dele também tenho reedições, "Encontro de Amor num País em Guerra", "Diário de um Killer Sentimental", "Mundo do Fim do Mundo" ou "O General e o Juiz", o  que significa que era um escritor muito amado entre nós.
    Em janeiro deste ano, Café com Letras, uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Oeiras, convidou Luís Sepúlveda para uma conversa, com moderação de Ana Daniela Soares. Quando chegámos à Biblioteca, um pouco antes da hora marcada, vimos que os lugares já se encontravam praticamente todos tomados. Funcionários da Biblioteca deslocavam mesas e juntavam cadeiras para acrescentar mais lugares e, entretanto, continuavam a entrar pessoas que, depois de esgotadas as cadeiras e o espaço disponível, começaram a sentar-se nos parapeitos das janelas. Os organizadores estavam obviamente surpreendidos com a afluência de pessoas.
   Um pouco depois da hora marcada, ele, o escritor, acompanhado de mais algumas pessoas, sentou-se na mesa que lhe estava reservada. Do meu lugar, e dada a quantidade de pessoas, conseguia apenas ver-lhe parcialmente a cara.
   Mas não foi isso que impediu as pessoas ali reunidas de o ouvirem, atentamente. Falou tranquilamente sobre a vida dele e sobre os livros. A dada altura contou quando tinha ouvido falar pela primeira vez em Portugal: estava preso, na sequência do golpe militar do Pinochet e houve um dia em que não se ouviram os guardas, nem gritos. Não vieram buscar presos e no final do dia levaram-lhes comida, um pouco melhor do que era habitual. Quando os presos começaram a perguntar o que tinha sucedido, um guarda respondeu "Os vosso ganharam em Portugal." Foi no dia 25 de abril de 1974.
    Penso que muitos dos leitores de Luís Sepúlveda sentem uma empatia que não vem apenas dos livros mas também desta quase coincidência entre os dois países. Quando em Portugal se conquistava a liberdade, o Chile era arrastado para uma sangrenta ditadura. 
    Mas a simplicidade da escrita de Luís Sepúlveda e a quase ingenuidade das suas histórias são, penso eu, os motivos pelo qual é tão lido. 
    No café com livros falou porque escrevia, mas prefiro roubar as palavras com que encerra o livro  "O General e o Juiz":
    "(...) Não sou dado a perder-me nas velhas dúvidas que mortificaram e fizeram pensar os antigos filósofos, nem a sentir outras dúvidas além das necessárias para avançar no único caminho que sinto possível e que é o da escrita, essa barricada onde aportei quando já todas as outras tinham explodido, chegando a pensar que já não havia nenhum lugar possível para a resistência."

    A melhor homenagem que podemos fazer a um escritor é ler o que escreveu, por isso, hoje comecei a reler "O velho que lia romances de amor", o livro dele que mais gostei e que foi o primeiro livro que publicou.

Comentários

  1. Tu disais qu’il fallait ériger des barricades de livres pour rêver, aimer et lutter. Même si les ordures psychopathes d’en face ne lisaient pas.
    Nous te le promettons. Nous raconterons ton histoire. Car tes mots ont la force d’inonder les cimetières de mots d’amour, et distribuent toujours des cartes à jouer aux morts qui en ont assez d’être morts. Même si en se levant, ils titubent pour lancer des pierres sur les tortionnaires, depuis Jésus jusqu’à Victor Jarra, en passant par Rosa Luxembourg ou la comandante Tana, devant les « pacos » qui leur donnent à boire une éponge trempée dans le vinaigre puant de l’Histoire.
    Je pleure ce matin. Je n’ai jamais pu aller chez toi, te porter ce livre dont Carmen t’avait parlé. Je disais demain, et demain s’est soudain retourné dans les épaules.
    Uniquement ce souvenir où nous avions partagé ensemble, un ancien croisement tout neuf. Ce jour où dans une taverne d’Estelí une lune rouge s’était cassée au-dessus du comptoir et où un M16 à silence tirait sur des calendriers. Ce jour où chaque jour un saint était effacé par un des nôtres.
    Bon voyage à ton voyage, Luis, mon amarade !
    Toi que je récite par cœur dans le chili sans majuscule des chiens de notre espérance.

    Hasta la poesia ! Siempre !

    Serge Pey, 15 avril 2020-04-17
    https://www.legrandsoir.info/luis-sepulveda-est-mort.html

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  2. Em 1997, o jornalista e editor de Cultura do PÚBLICO Torcato Sepúlveda (1951-2008) trouxe às páginas do jornal esta história sobre uma singular passagem do escritor chileno pelo Aeroporto da Portela, em Lisboa. Recuperamo-la esta quinta-feira, dia em que o autor de O Velho que Lia Romances de Amor morreu em Oviedo, vítima de covid-19.
    O escritor chileno Luis Sepúlveda não gosta de polícias. Deve explicar-se que o autor de Mundo do Fim do Mundo (Asa) foi guerrilheiro no Chile, esteve preso e torturaram-no nos cárceres de Pinochet e foi activista do grupo ecologista Greenpeace. Basta de explicações. Luis Sepúlveda não gosta de polícias, pronto.
    Um dia, Luis Sepúlveda desembarcou em Madrid, vindo da Alemanha. O romancista tem um ar de pugilista atarracado e os polícias do aeroporto aborreceram-no durante horas, desconfiando que ele seria um imigrante clandestino ou um traficante de droga disfarçado. Depois de uma série de telefonemas, deixaram-no em paz. Sepúlveda proferiu a sua conferência madrilena e, no dia seguinte, partiu para Lisboa, onde o esperavam na Casa Fernando Pessoa. À chegada à Portela, dirigiu-se ao guichet dos cidadãos não-comunitários. Sacou do passaporte e mostrou-o. O agente abriu lentamente o passaporte, folheou-o, olhou demoradamente a fotografia, encarou o sul-americano que tinha à frente com a minúcia de um cão de fila. Sepúlveda pensou que o esperava o calvário de Madrid. Engoliu invectivas contra a puta da vida, contra os países do Sul da Europa que cada vez mais se parecem com os do Norte, e contra o capitalismo internacional, até.O agente da fronteira, tímido, ousou perguntar: “O senhor chama-se Luis Sepúlveda?” – “Sim”, regougou. “O senhor é romancista?” – “Sou”, replicou já um tanto amaciado. “É autor de um livro chamado O Velho Que Lia Romances de Amor?” – “Sou”, disse já espantado. “Então, passe, seja feliz em Portugal, e escreva um livro sobre nós.”
    O rebelde Luis Sepúlveda rendeu-se, e ainda hoje fala em comprar casa em Portugal e vir para cá viver. Não aceita explicações racionalistas. “Tropeçaste num polícia de excepção, nem todos são assim. Isto não é a utopia comunista.” Que não, que não, que um país no qual os polícias reconhecem os escritores estrangeiros é obrigatoriamente um país diferente.

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