Retalhos da Vida de um Médico, Fernando Namora (Livraria Bertrand)

     Não sei se li ou se reli este livro, mas seguramente o encanto foi como se o lesse pela primeira vez. Apesar de ser uma edição de 1979, trata-se da 22.ª edição (142.º milhar). Como é uma obra que está no Plano Nacional de Leitura, presumo que neste momento já haja mais do dobro de edições e exemplares publicados. Lembrava-me de algumas das histórias, mas, mais uma vez, não sabia se de as ler ou se de as ver na sua adaptação à televisão. Atrás destas memórias fui procurar os episódios e estão todos disponíveis no arquivo da RTP.
    Vale a pena revê-los. O actor José Peixoto representa o médico. Trata-se de uma adaptação de Artur Ramos, Bernardo Santareno, Carlos Coutinho, Olga Gonçalves, Urbano Tavares Rodrigues e Dinis Machado e música de Fernando Lopes Graça. Quase inacreditável o envolvimento destes escritores na elaboração dos diálogos.
    São pequenas histórias, de partos, doenças, mortes, sempre contadas na primeira pessoa. São verdadeiramente retalhos da vida de um médico. Dúvidas de um jovem médico em pequenas aldeias - primeiro na Beira Baixa e depois no Alentejo -, confrontado com a desconfiança dos aldeões e, nalguns casos, de ciganos, a suspeição dos curandeiros e com o paternalismo e arrogância dos médicos mais velhos. Algumas histórias são comoventes outras divertidíssimas, como a "História de uma pneumonia". Um dia um homem com as rugas da nuca e da face preenchidas por décadas de sujidade chegou ao hospital. Como teria de ficar internado, era obrigado a tomar um banho prévio, o que suscitou grande reação da parte dele porque apenas tinha tomado banho antes das sortes e do casamento. (...) Está um homem sujeito a apanhar um catarral ou um resfriamento.  E o receio dele confirmou-se, teve uma pneumonia.
    Mas se as histórias nos prendem, a escrita, sobretudo as descrições das paisagens e o início de cada conto são extraordinários:
    "O vento reunia-se ali, na praça quieta, com o asfalto liso, negro, a espelhar a melancolia ensonada das pessoas e das casas. Da minha mesa de café eu olhava esse Inverno degredado e sentia-me fustigado e ausente. O dia era só bruma e nela escondia o meu sonho: nela refugiava a memória, a distância, a paisagem clara e movimentada da minha terra. Eu, o temporal e a gente vária que viera de longe atraída pelo esplendor do volfrâmio tínhamos certamente o aspeto de estar ali por acaso ou por condenação, à espera de uma oportunidade de regresso. O vento gania de saudade de outros lugares, molhava-se de chuva e tristeza, e tudo isso, prisão e desespero, escorria também da minha face." - Cardos, cardos na floresta.
    Apesar de serem histórias de uma época não muito distantes, falam de uma realidade que, creio, já pouco tem a ver com as nossas aldeias e também com o exercício da profissão de médico:
    "Uma reforma na fachada da igreja leva uma geração a ser estimada pelos olhos; um médico, por seu lado, tem de salvar uma pessoa da família antes que conquiste a intimidade e a confiança de um lar."
     Mas isso em nada interfere com o interesse e qualidade das histórias que conta.
   

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