A vida invisível de Eurídice Gusmão, Martha Batalha (Porto Editora)

 

   O primeiro  contacto que tive com A Vida Invisível de Eurídice Gusmão foi através deste cartaz, afixado  em vários locais, no Largo de  Santos, que anunciava o filme. Mais do que a imagem foi o título que me atraiu. Passado pouco tempo encontrei, por acaso, o livro na Livraria da Travessa.
    Comprei-o para oferecer (sem sequer ter tempo de o ler antes de voltar a embrulhá-lo e oferecê-lo) e a amiga que o recebeu disse-me que tinha gostado muito. Pouco tempo depois vi o filme (ver trailer). Extraordinário. Realizado por Karim Ainouz ganhou o prémio principal da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes de 2019. O filme não é uma mera adaptação do livro, mas a mensagem está lá. A vida invisível das mulheres. Como diz a Martha Batalha, no início:
    "Mas o mais real deste livro está na vida das duas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. (...) Eurídice  e Guida foram baseadas nas vidas das minhas e das suas avós."
    E ainda que não as reconheçamos nas figuras das nossas avós, sabemos que existiram e ainda existem mulheres com vidas similares ao destas mulheres, que podiam ser tudo o que queriam, mas foram apenas o que os pais, primeiro, e os maridos - os homens - depois, lhes permitiram que fossem. "Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras «Do lar»."
     E não são apenas as irmãs que reconhecemos, Zélia, a vizinha, que vai imaginando e denegrindo a vida de Eurídice, e que acompanha toda a história, também pode ser vista por aí:
    "As constantes insatisfações de Zélia terminaram por modificar a sua aparência. Para cortar a casca da abóbora, para desentupir a pia, para limpar as prateleiras mais altas, Zélia fazia muitas caretas, que no começo não combinavam com o rosto jovem, mas que depois faziam parte das suas feições."
   Mas a vida e história de Eurídice e Guida são contadas com uma leveza, uma imaginação, uma graça, que torna difícil interromper a leitura. E sem drama, mas talvez seja este o verdadeiro drama, a resignação e as voltas que as mulheres desta geração - bem como as de gerações anteriores e posteriores - deram de forma a conviver com as limitações que lhes foram impostas.
 
     Um retrato impiedoso dos pais, ambos portugueses que emigraram para o Brasil, sobretudo do pai, autoritário,  que recusa receber a filha, Guida, quando o procura, sozinha e grávida do filho:
    "Seu Manuel enlouqueceu um pouco com a morte de D. Ana. Como bom português, preferiu fazer isso sozinho e contra a parede do quarto, onde bateu a cabeça em desespero nas sete primeiras noites sem a mulher. Ele queria ter cabelos para puxar, mas agora só tinha uns poucos fios por trás das orelhas, penteados para cima para cobrir a careca. Os fios raros lhe eram tão preciosos que achou por em deixá-los em paz. Ele tinha no peito o mesmo remorso que Guida sentiu quando soube da morte da mãe. Remorso por coisas que nem eram muito sua culpa, como o jeito durão como foi criado, e que dizia que não há nada mais importante do que honra. Foi essa crença que fez seu Manuel renegar a filha, porque era melhor ter uma filha longe e uma mulher morrendo aos poucos do que aceitar a moça pródiga, e transformar a vergonha em algo tangível." E quase a acabar, ainda sobre o pai:
    "Quando D. Ana morreu ele se arrependeu ainda mais, e tornou-se ainda mais português, não deixando ninguém saber de nada."
    Um livro e um filme a não perder. 

Comentários

Os mais lidos

O Sétimo Juramento, Paulina Chiziane (Sociedade Editorial Ndjira)

Niketche, Paulina Chiziane (Caminho)

Os Bem-Aventurados, Luísa Beltrão (Editorial Presença)