Os Olhos dos Condenados, Eugenia Almeida (ASA)

    O ano que passou foi, penso que para todos, muito estranho. Entre confinamentos, layoffs, mudança de casa e gravidez, foi, também, o ano em que praticamente não li. Havia sempre qualquer coisa mais urgente, ou o livro que tinha em mãos não me chamava como eu gostaria, por vezes as duas razões em simultâneo.
    Por isso, fiquei muito feliz por, no virar do ano, ter encontrado, por acaso este livrinho na estante dos meus pais. Não é a primeira vez que, ao passar os olhos pelas lombadas da estante do sótão, encontro um livro que lá ficou esquecido, só começado, e que me apaixona. Foi assim com o romance de Kazuo Ishiguro, Nunca Me Deixes, e foi assim com este, de Eugenia de Almeida, Os Olhos dos Condenados.
   
    Numa pequena terra argentina, em plena ditadura militar, uma linha de comboio separa os ricos dos pobres. Acima da linha, um hotel, um cabeleireiro, a esquadra, as casas grandes. Abaixo, os pobres, as mulheres da vida, os ladrões. E o advogado, Dr. Ponce, que contraria esta ordem natural, e vive na zona pobre com a sua tagarela esposa, Marta. Por três dias, o autocarro passa sem parar, em frente do hotel, deixando para trás um casal que nele se aloja, e a irmã do Dr. Ponce, que, de visita, pretende regressar à cidade.
    O episódio reiterado é alvo de estranheza e curiosidade por parte da população, que, com os mais variados pretextos e as melhores roupas, passa a reunir-se em frente do hotel para ver o autocarro passar, luzes apagadas e acelerando ao aproximar-se da paragem.

    «Rúben olha para a gente que o rodeia. Trinta, quarenta pessoas vestidas para sair.
    [...]
    Cada um dos que está ali sabe que não vêm apanhar o autocarro. Vão vê-lo passar a toda a velocidade. Mas ninguém quer reconhecer que está ali para isso.»

    O Dr. Ponce considera ser uma ofensa pessoal; o casal do hotel, um estratagema do hoteleiro.
   A ordem vem de cima, ninguém sabe de onde nem porquê, a par da instrução de bloqueio da linha férrea. O comboio também não vai passar. Leíto, circulando na sua bicicleta, vai distribuindo perguntas e as muito poucas respostas. Que há uma perigosa subversiva a monte, com mandado de captura.
  Ao terceiro dia, o casal abandona o hotel, decidido o homem a calcorrear a pé a distância até à aldeia vizinha, onde espera apanhar o autocarro. Vão pela noite, ignorando as advertências dos locais.
   Uns dias depois, chega a ordem de retoma de circulação dos transportes. Os subversivos foram apanhados e mortos; a vida pode retomar.

   «O comissário tem uma frase adormecida que não o deixa pensar em nada. Uma frase que não chega a formar-se, que se soergue mas não consegue levantar-se. Algo que começa por "e se..." mas não termina

     O livro ganhou o prémio "Las Dos Orillas", do Salão Ibero-Americano de Gijón, um prémio que, de acordo com o Jornal El Pais, pretende descobrir novos talentos da narrativa escrita em espanhol e português.

    Aconselho a leitura.

***

Comentários

  1. Começando pelo fim, este pequeno livro, quase um livro de bolso, ganhou o Prémio de Romance “Las Dos Orillas”. Segundo é dito nas badanas, o prémio pretende reparar as injustiças cometidas contra muitos escritores e escritoras que, devido ao isolamento dos seus países, estão condenados a não atravessar as fronteiras nacionais e garante a publicação em cinco países, Portugal, França, Itália, Grécia e Espanha.
    Este romance decorre na Argentina, numa pequena vila, em 1970. Na vila, dividida ao meio pela linha do comboio, que separa ricos e pobres, passa diariamente uma camioneta, só que, sem qualquer explicação, um dia a camioneta não para e a cancela do comboio permanece baixada. Nos dias a seguir a camioneta continua a não parar, impedindo a irmã do Dr. Ponce que tinha vindo visitar o irmão e a cunhada, e um casal alojado no hotel, de partir. Ninguém sabe porque é que o motorista passa pela vila, com as luzes apagadas e finge não ver as pessoas que pedem que pare. O casal forasteiro, termina por decidir abandonar a vila a pé. Os habitantes começam a sair à rua para ver a camioneta parar sem passar, mas não têm qualquer explicação para isso.
    Sabem depois que um casal foi morto num vagão parado e no dia seguinte a cancela é levantada e a camioneta para na vila.
    O ambiente é claustrofóbico (“Olhe, Gómez, eu gosto de si mas não faça tantas perguntas. O silêncio é saúde. Para que vamos preocupar-nos com um tipo da cidade que passou umas horas na vila? Hein? Para quê?”) e cheio de histórias de pessoas levadas ou desaparecidas:
    “O capataz lembra-se de um rapaz que viva junto ao rio. Um dia desapareceu e ninguém soube para onde, nem a família. Às vezes via-o da varanda, enquanto estava a ler. Viu-o passar uma vez com os peixes ao ombro, a assobiar. Pensou que aquele homem era livre, tão livre que ofendia os olhos dos condenados. Agora levaram-no. Talvez esteja a flutuar no seu rio, de borco, como um livro na fogueira.” (pg. 107)
    O livro está muito bem escrito, contudo falha, em meu entender, quando larga Marta e mesmo o Dr. Ponce. Sabemos – mas talvez não se compreenda totalmente – o que os levou até ali, mas depois ficamos sem saber o que se passou no espaço que medeia entre os factos que levaram ao casamento e os factos narrados e há um desnível relativo às outras personagens de quem praticamente nada sabemos.

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    1. Concordo que gostaria de ver mais sobre as personagens, mas ao mesmo tempo, senti que as conhecia na medida certa para o que a história pretendia transmitir.

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