As Ondas, Virginia Woolf (Relógio D'Água)

    Acabei de ler As Ondas. Não me vou perder na sua classificação, se se trata de um romance, de novela, de teatro, de prosa ou de poesia. Acho que é um pouco de tudo. Não sei quanto tempo Virginia Woolf levou a escrevê-lo, mas imagino que tenha sido uma escrita lenta, pausada, feita e desfeita. E a leitura também tem de ser deste modo, demorada, como se mastigássemos as palavras, ou antes, as ruminássemos. Porque não sendo uma leitura fácil, não conseguimos deixar de nos encantar com as palavras e de nos identificar em muitas passagens. De sentir que foi mesmo assim que nos sentimos ou que também pensámos isso ou vivemos aquilo.

    Não tem capítulos, mas, como se tudo decorresse num dia ou ao longo de uma vida, há nove separadores com letra em itálico que descrevem o percurso do sol, a luz do dia: O sol ainda não nascera. O sol ergueu-se mais ainda. O sol ergueu-se. O sol já não repousava sobre o manto de águas verdes. O sol atingira o ponto mais alto do seu percurso. O sol já não ocupava o meio do céu. O sol declinara no horizonte. O sol baixava no horizonte. O sol descera finalmente no horizonte, e era agora impossível distinguir o céu do mar.

    E as ondas, sempre presentes também acompanham esse movimento até nos conduzirem ao declínio: Ao desfazerem-se, as ondas espalhavam na praia os seus grandes leques, enviavam sombras brancas para as profundezas das cavernas e refluíam suspirando sobre os seixos.

    Ao longo deste dia, deste tempo de uma vida, seis amigos – Bernard, Louis, Neville, Susan, Jinny e Rhoda – que conhecemos através de monólogos, que se confundem e se justapõem, vão-nos falando de si próprios, dos outros, das expetativas e desilusões, da vida e da morte. E embora consigamos criar imagens distintas de cada um, há momentos em que os confundimos (sim, porque esta vida não é apenas uma vida, e às vezes ignoro se sou Bernard ou Neville, Louis ou Susan, Jinny ou Rhoda, de tal modo são estranhas as relações que temos uns com os outros).

    Através destes monólogos (que algumas vezes são falas, outras vezes pensamentos) vamos criando a imagem de cada um à medida que brincam, frequentam a escola, vão para os colégios e depois para a universidade, se tornam adultos, sofrem a perda de um amigo comum, Percival, envelhecem e morrem. E vamos tendo a perceção da passagem do tempo e as consequências que tem: Tudo se modifica. Tudo passa, a juventude e o amor. (…) A vida vem. A vida vai-se embora. Fazemos a vida. É pelo menos o que dizem (…) Atingimos o meio da nossa vida e o seu peso depositou-se sobre os nossos ombros (…) Perguntamos uns aos outros o que fizemos com as nossas vidas.

  Percival, cuja voz não ouvimos, mas que é central para todos os outros, vai para a Índia e morre aos 25 anos: Amavam Percival que partiu e morreu. Ele ocupava o centro.

    Louis, cujo pai era banqueiro em Brisbane e ainda mantém um sotaque australiano de que se envergonha, é aquele que nada tem de sonhador. Quando o pai vai à falência, apesar de ser o melhor aluno do colégio, vai trabalhar num escritório. É isso que explica os meus lábios contraídos, a minha doentia palidez e o meu aspeto desagradável e um pouco repugnante quando, com amargura e ódio, me volto para Bernard e Neville que passeiam sob os teixos, herdaram poltronas e ao crepúsculo correm as cortinas para que a luz incida sobre os seus livros.

    Neville é o mais frágil e, acima de tudo, deseja a ordem e detesta o desmazelo byroniano de Bernard (que ama). (...) comentei para mim próprio que as nossas medíocres vidas sem beleza só se revestem de esplendor e adquirem significado quando as vemos com olhos de amor.

    Bernard é poeta e precisa de ser estimulado pela presença de outras pessoas. (…) vou formular a pergunta decisiva: de todos esses eus qual é o meu? Dependo muito do ambiente. Quando digo a mim próprio “Bernard”, quem é que faz a sua aparição? Um homem fiel, sardónico, desiludido, mas não amargurado. Um homem sem idade nem posição social. Apenas eu.

    Rhoda, que senti como o alter ego de Virginia Woolf, é uma personagem perdida, distinta das outras personagens femininas, mais triviais: Quando estou sozinha, acontece-me muitas vezes mergulhar no vazio. Preciso de poisar furtivamente os pés no rebordo do mundo para não cair no nada. Tenho que bater com a mão numa porta dura para regressar ao meu corpo. (…) Nasci para ser estilhaçada. Nasci para que se riam de mim. Estou destinada a andar à deriva, entre os homens e mulheres de faces contraídas e línguas mentirosas, como um pedaço de cortiça num mar revolto. De cada vez que a porta se abre sou projetada para longe como uma alga. Sou a espuma que deposita a sua brancura nas mais longínquas rochas. Sou também uma rapariga, aqui, de pé nesta sala.

    Jinny vive com a avó em Londres e, quando se torna adulta, tem uma vida social intensa:  O meu cabelo tem a curva exata. Os lábios o vermelho que eu queria. (…) Esta é a minha vocação. O meu mundo. Tudo está preparado e antecipadamente decidido. Os criados postados em fila, recebem o meu nome, o meu recente e desconhecido nome e anunciam-no diante de mim. Entro.

    De Susan sabemos que era amada por Percival e depois vemo-la a cultivar a terra e a cuidar dos filhos:  Vagueio pela casa o dia inteiro, de avental e chinelos, tal como a minha mãe que morreu com um cancro. Basta. Estou farta de tanta felicidade natural. E, no entanto, sei que outros filhos virão, mais berços, outros cestos na cozinha e mais presuntos curados ao fumo.   

    Os seis vão-se encontrando ao longo da vida (Mudámos, estamos irreconhecíveis.), envelhecendo e confrontando-se com a morte ou a sua proximidade: Invencível e indómito é contra ti que combato, oh Morte! 

    Antes de fechar As Ondas, a que irei voltar mais vezes, releio este parágrafo lindíssimo que aqui deixo:  Mas se algum dia não vieres depois do pequeno-almoço, se algum dia te vir num espelho a olhar outro homem, se o telefone tocar inutilmente no teu quarto vazio então, depois de angústias indizíveis – pois não tem limites a loucura do coração humano. Procurarei e encontrarei outro ser que sejas tu. Entretanto, vamos abolir com um simples gesto o tic-tac do relógio do tempo. Chega-te para mais perto de mim.

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