Os Anos, Annie Ernaux (Livros do Brasil)

Os Anos Annie Ernaux Clube de Leituras
   Os Livros do Brasil fazem parte da minha juventude. Foi com esta editora e coleção (Livros do Brasil - Dois mundos) que conheci e li alguns autores que continuam a ser os meus preferidos: John Steinbeck, Ernst Hemingway, Albert Camus, Pearl S. Buck, Franz Kafka, entre tantos outros. Gosto da quase imutabilidade das capas e do destaque dado ao autor em detrimento do título.

    Neste caso, não conhecia a autora, Annie Ernaux, mas o livro foi-me emprestado por uma amiga que já me tinha falado dele durante as caminhadas que, por vezes, fazemos ao final do dia. Seria incapaz de catalogá-lo ou rotulá-lo naquelas categorias precisas com que críticos e estudiosos arrumam os livros. A autora fala numa autobiografia impessoal (pg. 194), porque “O importante, para ela, é a possibilidade de captar a duração que constitui a sua passagem pela Terra numa determinada época. Esse tempo que a atravessou, esse mundo que ela registou apenas por viver.”

    Apesar de ser um registo autobiográfico, escolhe falar na 3.ª pessoa do singular, "ela", exceto quando no início - numa espécie de prefácio não titulado -  elenca imagens diversas como se fossem fragmentos de memória e acaba referindo "Tudo se apagará num segundo. O dicionário acumulado desde o berço até ao leito da morte irá desaparecer. Depois, o silêncio e nenhuma palavra para dizer. Da boca aberta nada sairá. Nem eu nem mim. A língua continuará a pôr o mundo em palavras. Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante." Mais à frente justificará a escolha referindo que existe demasiada continuidade no «eu», algo limitado e sufocante, e no «ela» demasiada exterioridade e distanciamento.

    A primeira fotografia é de um fotógrafo, em 1941, onde aparece como um bebé gordo junto da família e as memórias resultam de narrativas familiares, posteriores, centradas sobretudo na fome e no frio durante o inverno de 42, a invasão alemã, os mortos e as destruições. Depois da guerra, começam as memórias próprias, da escola, das férias, e da vida em geral: a roupa remendada, os lápis, os livros e cadernos, que eram reutilizados, e os programas escolares que não mudavam.

    Ao mesmo tempo, havia uma evolução impressionante, em termos de conforto e qualidade de vida, com a electrificação das casas e a generalização da água canalizada, os antibióticos, a segurança social e, como refere "Cada vez mais, as pessoas acreditavam que podiam ter uma vida melhor graças às coisas."

    Descobre-se depois adolescente e, mais tarde, a frequentar a universidade enquanto a Argélia luta pela autodeterminação e rebentam bombas em Paris. Fala então dos acontecimentos de 17 de outubro de 1961, em que vários argelinos foram mortos e os corpos atirados ao Sena, referindo que à época pouco se soube sobre estes acontecimentos e experimentando mal-estar por não ter sabido. Segue-se o maio de 1968 que acreditou ser o primeiro ano do mundo. Mas passado esse sobressalto a vida dela segue ao ritmo comum das pessoas da sua geração e do seu meio: casa-se, é professora numa escola, tem dois filhos, divorcia-se, reforma e envelhece. Mas ao mesmo tempo que nos conta a vida d'ela, fala-nos da política francesa e internacional, do que se comia, como as pessoas se relacionavam, o que liam, as músicas que ouviam, o que eram os seus hábitos e a vida social. Fala da luta pela liberalização do aborto, a chegada dos centros comerciais, o aparecimento das novas tecnologias e transmite a sensação de aceleração da vida:"A chegada cada vez mais rápida de coisas novas fazia com que o passado fosse recuando para mais longe."

   Vê-se depois a ocupar o lugar da geração precedente junto dos filhos, das namoradas e também dos netos ("O tempo dos filhos vinha substituir o tempo dos mortos".) É por isso que é tomada pelo sentimento de urgência, receia que com o envelhecimento a memória volte a ser nebulosa e muda e por isso decide dar forma, através da escrita, à sua ausência futura. Na última fotografia de que fala, ela descreve-se  como uma mulher, de meia-idade (tem 66 anos), envolvendo com os dois braços a sua neta, que tinha sentido como sua substituta, pois soube da sua existência enquanto lutava contra o cancro na mama.

    Gostei muito de ler Os Anos. Apesar da distância em termos geracionais, geográficos e linguísticos, há muito de comum, talvez porque, como refere nas últimas páginas, não é um trabalho de rememoração com o objetivo de narrar uma vida. "Neste caso, ela só olhará para si própria para aí reencontrar o mundo, a memória e o imaginário dos dias que passaram por esse mundo, captar a mudança das ideias, das crenças e da sensibilidade, as transformações das pessoas e do que ela viu e conheceu, e que, provavelmente, não serão nada semelhantes ao que será visto pela sua neta e por todos aqueles que viverem em 2070."

    Adoraria ter talento para escrever Os (meus) Anos.

***

Quero ler este livro!


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