Narciso e Goldmund, Herman Hesse (D. Quixote)

Narciso e Goldmund
   Em vários momentos de Narciso e Goldmund, lembrei-me de Siddartha. Narciso e Goldmund foi publicado em 1930, 8 anos depois de Siddartha. Em ambos os romances, estão presentes a procura, o misticismo e a fé, mas sempre num registo dual, marcado logo pelas distintas opções de ficar e de partir. Ao contrário de Siddartha, em Narciso e Goldmund esta dualidade é assumida por cada um deles. O primeiro escolhe viver no mosteiro, uma vida mística dedicada ao espírito, enquanto Goldmund escolhe a errância, os caminhos sem destino, a procura do prazer.

     «No fundo, toda a existência parecia basear-se na dicotomia, na oposição dos contrários: ou se era homem ou mulher, vagabundo ou pequeno-burguês, guiado pelo intelecto ou pelos sentidos - nunca e em lado algum o inspirar e o expirar, a masculinidade e a feminilidade, a liberdade e a ordem, o instinto e o espírito podiam ser experimentados em simultâneo; sempre se pagava um com a perda do outro e sempre o aspeto que se perdia era tão importante e desejável como o que se ganhava.» (pg. 282)

     Goldmund entra ainda criança no convento. O pai leva-o e deixa-o lá para expiar os pecados da mãe, que os havia deixado. Uma noite é desafiado por outros estudantes a sair, à noite, e conhece uma rapariga. Sente-se atraído por ela o que o perturba. Um dia fala com Narciso e compara-se com ele  e este explica-lhe que são diferentes:

     «Vou dizer-te hoje uma coisa em que hás de vir a pensar um dia. Digo-te isto: a nossa amizade não tem outro objetivo nem outro sentido que não seja mostrar-te até que ponto somos absolutamente diferentes um do outro!» (pg. 42)

     E vai-lhe demonstrando a diferença entre os dois:

     «A nossa missão não é identificarmo-nos um com o outro, mas sim conhecermo-nos e aprender a ver e respeitar um no outro aquilo que ele de facto é: o seu oposto e complemento.» (pg. 52) «Tu dormes no regaço da mãe, eu velo no deserto. Tu sonhas com raparigas, eu com rapazes.» (pg. 94)

     A vida dos dois é de facto distinta, Narciso permanece no convento ao passo que Goldmund percorre caminhos sem destino, dorme com várias mulheres, sobrevive à peste e depois de ficar deslumbrado por uma escultura que vê numa igreja, decide tornar-se aprendiz do escultor. Algum tempo depois esculpe um S. João com a imagem que retinha do rosto de Narciso. Logo que acaba a peça, decide mais uma vez abandonar tudo e partir. Mas inquieta-se com a morte – a efemeridade da existência - e com o legado que deixará. Retorna depois ao convento de onde sairá mais uma vez, até regressar doente e definitivamente ao convento. Só então abandona a procura pela mãe, pelo rosto da mãe, esperando que ela o receba na morte. «Sem mãe não se pode amar. Sem mãe não se pode morrer.»

     Narciso e Goldmund é um romance inquietante.
    Quando fui ver o ano de edição surpreendi-me por ser anterior à II Guerra, porque há um diálogo entre Narciso e Goldmund sobre o assassínio de judeus:

     «- Podes imaginar que, em determinados casos, pudesses dar a ordem para o assassínio de judeus, ou pelo menos a tua anuência? (…)
     - Não, eu não daria uma tal ordem. Contudo, não é impensável que tivesse de assistir a tamanha crueldade sem intervir.
     - Não a impedirias, então?
     - Certamente que não, se não me tivesse sido dado o poder para intervir.» (pg 302)

    Uma antevisão ou era já uma realidade?

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