Almas que não foram fardadas, Rogério Pereira (ed. Espaço e Memória - Associação Cultural de Oeiras)

  

    A procura da correspondência entre pais e filhos durante o período em que os primeiros estavam em comissão na guerra colonial tem-me permitido conhecer muitas pessoas e partilhar com elas histórias e memórias. Nalguns casos, parte dessa memória já foi transposta para as páginas de um livro, como é o caso de «Almas que não foram fardadas», de Rogério Pereira. Como o Autor explica na contracapa, ele, a sua Alma e o seu Contrário nasceram no mesmo dia, cresceram e fizeram juntos o serviço militar. O livro, dedicado à mulher, filhas, netos e «aos filhos de todas as almas que não se fardaram nem se deixam fardar» relata a vivência como enfermeiro militar, em Angola, entre 1969 e 1971.

    Logo a abrir o livro, no momento da partida, percebemos o papel que cada um desempenha: o próprio decide ir «aceitando a imposição que empurrava para a guerra tantos da minha geração», o Contrário contra-argumenta, considerando-o incoerente e recordando que sempre condenara a guerra. A Alma modera os debates entre os dois, embora neste caso se tenha abstido de o fazer.

    A narrativa é interessante porque ao mesmo tempo que relata o que se vai passando na companhia, as saídas, os combates, os mortos, os doentes que recebe na enfermaria, dá conta do debate que havia entre os soldados, entre os que defendiam a utilização da força e da intimidação e os outros que falavam na injustiça da opressão e contra a exploração dos fazendeiros brancos. E como ficam perturbados com a leitura de um texto de Mário de Andrade sobre os acontecimentos de 4 de fevereiro de 1961.

    Num pequeno capítulo intitulado «O que eu fiquei a saber sobre a guerra» Rogério Pereira consegue transmitir na perfeição o medo que os acompanhava:

    «(...) fiquei a saber que a guerrilha atuava também à noite. Que os tiros dos guerrilheiros mais certeiros eram os primeiros e os seguintes apenas serviam para amedrontar. Que os locais menos prováveis para a emboscada era onde ela mais acontecia, de noite ou de dia. Que os soldados mais inexperientes disparavam por tudo e por nada. Que os pirilampos eram alvos luminosos furiosamente metralhados pelos mais medrosos, julgando que a guerrilha atravessava a mata a fumar, como se andassem em calmo passeio. Que os trilhos seguidos para ir a qualquer lugar não devem ser repetidos para regressar.»

    Depois de Maquela do Zombo, a companhia segue para Nharea, no planalto do Bié, com uma curta paragem por Luanda.

    A família, a mulher e as duas filhas, ocupam um espaço importante no livro, desde a despedida, à correspondência, às fotografias que guarda e recebe, até à licença e regresso definitivo. Há um momento particularmente tocante, quando revela um filme que a mulher lhe tinha enviado:«No fundo da tina, sobre o branco papel, a pouco e pouco, ia aparecendo um corpo. Minha filha aparecia. Era como se estivesse nascendo.»

    O livro começa com um excerto de José Saramago, que acaba com a seguinte frase: «Somos a memória que temos, e essa é a história que contamos.» Não pude deixar de me lembrar do livro «Somos o esquecimento que seremos» de Héctor Abad Faciolince, que é uma homenagem ao pai e como o Autor repete, é um livro contra o esquecimento. Só aparentemente são afirmações contrárias.

    Rogério Pereira, face à incerteza da reedição de «Almas que não foram fardadas», disponibilizou para os leitores interessados, o link para o seu livro em formato pdf.

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