Princípio de Karenina, Afonso Cruz (Companhia das Letras)

 

Principio de Karenina de Afonso Cruz in Clube de Leituras
      Soube-me muito bem ler esta novela, Princípio de Karenina. Um livro simultaneamente leve e difícil. Em muitos momentos, poesia em forma de prosa:

    «Havia breves e raros momentos em que a nossa casa sorria, quando de manhã a criada da Mealhada abria as janelas, para arejar a casa, e as cortinas esvoaçavam. Ou quando eu me reclinava nos acordes, como se fossem divãs, que a minha mãe tocava ao piano. [...]

    Todas as noites, a minha mãe, ao inclinar-se sobre mim, parecia despedir-se. Acho que ela sentia mesmo isso, que por cada dia que passava havia uma parte de mim ou dela que ia embora.»

    Conforme explica no final, este livro nasceu de uma viagem ao Camboja e ao Vietname, organizada pelo Centro Nacional de Cultura, em 2017, cujo objetivo seria encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo, em lugares tão distantes como a Conchinchina. Conchinchina foi o nome dado pelos portugueses a uma região situada no sul do atual Vietname, na Indochina, mas é também, entre nós, uma expressão usada para indicar uma região muito longínqua.

   Ora, o protagonista e narrador nasce numa família abastada, dominada pelo pai, que temia ou odiava tudo o que era estrangeiro ou apenas de fora – de casa, da terra, do país -:

    «- Nunca saia do seu país, menino, nunca saia de casa mais do que o estritamente necessário, que é perigoso

       Cresce na atmosfera concêntrica da casa, com os pais e a criada, a visita ocasional de um casal, e um amigo, os Dois Metros, com quem se vai zangando e reconciliando. Casa, para cumprir o que a família espera dele, e parece seguir as pisadas do pai, até que uma mulher, oriunda da Conchinchina, é contratada como criada:

    «Conchinchina era para o meu pai o lugar para lá do lugar. Uma pessoa podia pecar, mas a Conchinchina era o metapecado, a fera suprema, o ponto onde a razão enlouquece, estava para lá de Deus. Uma pessoa podia imaginar a extensão do mundo, mas a Conchichina era um passo além da nossa imaginação. Como nunca tinha sentido uma paixão verdadeira, ainda não sabia que a mesma definição se poderia aplicar ao amor: fera suprema, enlouquecimento da razão, ponto para lá de Deus ou da imaginação

  Como explica na longa carta que escreve à filha: «(...) Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria muito feliz em qualquer mundo». Essa é a ponte para o princípio de Karenina, que dá o título ao livro, só que aqui não se trata de famílias mas de pessoas. 

    Nos últimos capítulos cita Ursula K. Le Guin (in The Wave in the mind: Talks and Essays on the Writer, The Reader and the Imagination) e não posso deixar de também a citar: "A grande frase de abertura do grande livro - não o seu mais importante, mas talvez o segundo mais importante - é (sim, podemos dizê-lo em coro): «Todas as famílias felizes se parecem; todas as infelizes são infelizes à sua maneira." As traduções variam, mas não de forma considerável. As pessoas citam essa frase tantas vezes que isso deve significar que ela as satisfaz; mas a mim não, nunca me satisfez. E, há vinte e tal anos, comecei a assumir essa insatisfação. Essas famílias felizes - de que ele tão confiantemente fala, apenas para as descartar como sendo todas iguais - onde estão elas

    Ao optar por citar esta dúvida, não estará ele a duvidar do que diz quanto à capacidade de ele e ela serem, respetivamente, infeliz e feliz?

***

Quero ler este livro!

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