Caderno de Memórias Coloniais, Isabela Figueiredo (Caminho)
O Caderno de Memórias Coloniais
foi editado em 2009. Esta é a 8.ª edição (maio de 2018), o que é indiciador do
interesse que suscitou. Ao lê-lo, senti o mesmo que tinha sentido
quando li A
Gorda, a surpresa perante o desassombro com que a Autora fala dela própria, do corpo, dos seus desejos e sentimentos, num registo assumidamente autobiográfico. E da forma pouco habitual como fala do pai, da sexualidade paterna (Ele sentia prazer em viver e gostava de comer, beber e foder...), bem como da sexualidade dos adultos, em especial das mulheres:
«Uma branca não admitia que gostasse de foder, mesmo que gostasse. E não admitir era uma garantia de seriedade para o marido, para a imaculada sociedade toda. As negras fodiam, essas sim, com todos e mais alguns, com os negros e os maridos das brancas, por gorjeta, certamente, por comida ou por medo. E algumas talvez gostassem, e guinchassem, porque as negras eram animais e podiam guinchar. Mas, sobretudo, porque as negras autorizavam-se a si próprias a guinchar, a abrir as pernas, a ser largas. Uma branca cumpria a obrigação.»
Mas, em paralelo com a descoberta da sexualidade e da chegada à adolescência, Isabela Figueiredo oferece-nos um retrato objetivo da sociedade colonial de então:
«Lourenço Marques, na década de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril. [...] Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhe gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão».
A objetividade resulta da forma sintética e sincopada como conta diversos episódios do dia a dia sem fazer juízos de valor («Matar um preto, a partir de certa altura, começou a dar chatice») ou tomar partido, como se fosse mera espetadora. Apesar do imenso amor pelo pai que transparece do que escreve, vamo-nos apercebendo, com ela, que o comportamento dele relativamente aos pretos é inaceitável («Aquele homem não é o meu pai»). Mas não nos dá uma visão maniqueísta ou simplista do pai, pois ao mesmo tempo que bate num preto que não aparece para trabalhar e dá dinheiro à mulher, humilhando-o, no final do dia confraterniza com os pretos que trabalham para ele:
«O meu pai passava o dia, de manhã à noite, a disciplinar pretos pelo trabalho, e de vez em quando confraternizando com eles, tudo com a mesma naturalidade, bebendo e comendo, e nesse momento eram iguais, quando a eletrificação acabava e o trabalho saía bom, e nesse momento eram homens que o álcool unia relativamente.»
Depois do 25 de abril e da independência de Moçambique, ela vem para Portugal, para casa da avó paterna, situada numa pequena aldeia perto das Caldas da Rainha, e o retrato que nos faz da forma como é recebida e ali vive é igualmente perturbador.
Nas palavras prévias, escritas depois da primeira edição, na qual tenta justificar o que a levou a escrever, bem como a figura do pai, recusando a sua diabolização, fala sobre a perplexidade que ainda sente «se todos vivemos o mesmo, no mesmo local e época, como posso só eu ter visto e sentido o que escapou aos outros?»
Uma palavra final para os prefácios de Paulina Chiziane e José Gil, que são não apenas mapas que nos orientam na leitura do livro, mas textos extraordinários sobre o colonialismo português, sobre o qual importa que se fale, porque como diz Isabela Figueiredo «O tempo silencioso apenas se abstém de produzir ruído».
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