Os
Memoráveis traz na primeira página um poema de Alexandre O'Neill e depois
uma citação extraordinária saída dos Murais de Lisboa: «Desculpem não nos
encontrarmos nestas ruas. Só nasceremos amanhã.»
E não
poderia ser mais adequada à narrativa, porque, para além da protagonista, Ana
Maria Machado, ter nascido depois do 25 de abril, penso que Lídia Jorge
escreveu Os Memoráveis a pensar nas gerações mais jovens que também não o viveram.
Quando o livro se inicia, em novembro de 2003, Ana Maria está numa receção em Maryland, em casa do antigo embaixador em Portugal (Frank Carlucci?)
quando é desafiada a preparar uma reportagem sobre o 25 de abril, para um
programa chamado A História em Vigília ou A História Acordada («Ela deveria ir
lá, quanto antes, recolher o resto da metralha de flores que ainda existe entalada
entre as pedras da calçada de Lisboa», pg. 14). Esse programa incluiria
reportagens noutras capitais, como Budapeste, Praga, Berlim e Bucareste.
Jornalista e filha de um conhecido jornalista português, aceita o repto
e contacta dois antigos colegas de curso para a acompanharem. Quando regressa a casa do
pai encontra uma fotografia, tirada na noite de 21 de agosto de 1975, no
restaurante Memories, que tem no verso identificados os convivas com nomes de
código dados por Rosie Machado - mulher do pai – e que mais tarde percebemos
que é a mãe de Ana Maria. Decide entrevistar os convivas daquela noite que, nalguns
casos, até conhecia pessoalmente. Os entrevistados serão sempre designados da
forma como estão identificados no verso daquela fotografia, com exceção do
capítulo inicial – A Fábula -, em que o embaixador fala no Lourenço, no
Carvalho, no Antunes e no Salgueiro, estes dois últimos já então falecidos.
Ao
mesmo tempo que Ana Maria e o pai se tentam entender, ela e os colegas
preparam-se e realizam as diversas entrevistas. E é nas entrevistas que é
evidente a capacidade de contar histórias da Lídia Jorge, porque nunca se reduz
ao diálogo entre entrevistado e entrevistador, há sempre questões laterais que
prendem a nossa atenção e que criam até algum suspense, como o braço sempre escondido
de um deles ou a presença da mãe de outro entrevistado.
Terminadas as entrevistas, com o desapontamento evidente em muitos dos
entrevistados pela situação do país, Ana Maria tem de enfrentar a situação em
que se encontra o pai e que provavelmente justifica que só seis anos depois
tenha escrito o argumento.
Achei
muito curioso ler Os Memoráveis pouco depois da morte de Otelo Saraiva de
Carvalho e do debate que se gerou à sua volta, até pela afirmação – que não é a
primeira vez que é feita aquando da morte de outros militares de abril – que a
ele se devia a liberdade. Segundo um dos entrevistados, designado Oficial de Bronze, no
25 de abril houve dois milagres e um ocorreu poucos dias depois, «foi quando
tomaram consciência que tinham estado envolvidos no golpe cinco mil homens, que
todos tinham cumprido o que lhes competia cumprir, e que depois da vitória e da
aclamação nas ruas, todos queriam regressar aos seus postos, anónimos, como
soldados desconhecidos. (…) Jurámos que dali em diante extinguir-se-iam as
palavras eu, tu, ele, nós, vós, para se usar apenas a terceira pessoa, a abrangente,
a coletiva pessoa, eles.» Por causa da quebra desse compromisso, ele assume um outro:
«(...) quis que todos os participantes, um a um, fossem não só
soldados identificados e conhecidos, mas sobretudo soldados reconhecidos pela
nação. Cinco mil.» (pg 100).
Mais à frente,
a viúva de Charlie 8 (Salgueiro Maia) dirá o mesmo, quando insistentemente lhe
perguntam como reagira ele ao facto de lhe terem negado a pensão enquanto
condecoravam os pides:
«É
preciso não esquecer que foram cinco mil homens a executar o golpe, e
prometeram uns aos outros que não haveria promoções, nem regalias, nem
distinções que, houvesse o que houvesse, sempre estariam unidos, sem diferença,
para o bem e para o mal. Fora um juramento solene. Entretanto, o tempo ia
passando, e ele apenas se mantinha fiel a esse princípio, não queria distinção
nenhuma. (…) Ele não morreu de desgosto, morreu com desgosto.»
Tenho
alguma dificuldade em distinguir realidade e ficção e em identificar algumas
personagens. Por exemplo, as cartas que o embaixador recebeu e que entregou a
Ana Maria serão verdadeiras? Terão existido cidadãos portugueses, militares, a
escreverem ao embaixador americano fazendo pedidos diversos que iam desde
dinheiro a uma intervenção militar? Quem é o General Umbela ou o advogado
Salamida?
A
fotografia foi tirada na noite de 21 para 22 de agosto. Quererá Lídia Jorge
referir-se à discussão havida entre o designado Grupo dos nove e os militares
do Copcon? O Diário de Lisboa de 22 de agosto de 1975 tem como título na 1.º
página “Revolução triunfou – a história de 24 horas decisivas”e fala nessa discussão.
É difícil
fazer a ponte entre o real e a ficção, mas quando a Autora cria personagens
fictícias que o leitor consegue identificar, é difícil pensar que as outras e
os seus depoimentos não são verdadeiros, contudo, fica sempre a dúvida. De qualquer forma,
gostei de ler Os Memoráveis e da forma como à distância (no tempo e no espaço) é vista a revolução do
25 de abril.
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