Um dia chegarei a Sagres, Nélida Piñon (Temas e Debates)

Um dia chegarei a Sagres
   Um dia chegarei a Sagres foi-me oferecido pelos meus filhos, no Natal. Por coincidência, poucos dias antes tinha-o folheado e ficado com interesse em lê-lo, até pelo olhar exterior sobre o nosso país, a sua história e a língua. Como refere a Autora, Nélida Piñon, na contracapa:

    “Cheguei a Portugal sabendo por onde caminhar, mas precisava estar lá pessoalmente para captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado. Eu precisava descobrir de onde veio esse nosso idioma deslumbrante (…).”

   E quanto ao idioma, não deixa de ser interessante que tal como acontece com autores africanos de língua portuguesa, há uma capacidade de reinvenção da nossa língua ou utilização de termos menos correntes entre nós, mas muito expressivos, como rodamoinho ["E ainda imergir no rodamoinho do próprio coração" (pg. 63)] ou verossímil.

    Como o título indica, Mateus, que nasceu no Minho, onde vive com o avô, decide ir a Sagres depois da morte deste, para cruzar a geografia portuguesa e na expetativa de ser conduzido aos primórdios da saga do Infante D. Henrique. Percorre o país até que chega um dia a Sagres onde permanece e se apaixona por uma mulher paralítica e inacessível. Mais tarde viaja pelo mundo até que regressa a Lisboa onde passa os últimos anos da sua vida.

    Um dia chegarei a Sagres está escrito em círculos, quer os parágrafos, quer os capítulos, quer mesmo a viagem de Mateus e se isso lhe dá um toque poético, não deixa de, a dada altura, se tornar cansativo. A razão para chegar a Sagres é pouco clara, embora seja reiteradamente falada ou questionada: 

    "Era incapaz de abandonar Sagres sem entender antes a real razão de haver me instalado naquele promontório maldito. (...) Nunca lhe confessei a razão de ter vindo a Sagres, trazido por um sonho impróprio para um lavrador inculto. (...) Seguia questionando se fora para sofrer que me aventurara a vir a Sagres, e se por ter vivido em uma aldeia carente de lendas, esquecera de absorver a realidade, de abstrair-me das urgências do cotidiano. Daí lançar-me, em Sagres, aos amores fracassados." (pg 284, 285) "Talvez por isso Sagres tornara-se uma saída promissora. Porque em sua esteira aprendia a explorar a imaginação, o território onde o Infante fixara os andaimes de Portugal e imprimira aos cronistas o tom apaixonado das suas narrativas"." (pg. 3719

    Se não resulta evidente a razão pela qual Mateus queria chegar a Sagres, é mais fácil perceber a escolha de Sagres por parte da Autora. Afinal foi dali que partiram as naus que aportaram ao Brasil e que justificam a nossa língua e passado comuns.

    Também é perceptível um fascínio e conhecimento da história, através da menção de diferentes eventos ou factos, alguns temporalmente coincidentes com a vida de Mateus (a morte de D. Maria II e, posteriormente, de D. Pedro V), outros que dificilmente seriam conhecidos ou lembrados pelo neto de um agricultor, que se considera inculto, apesar de ter estudado, como a inquisição ("Lembrava-me dos tempos em que passavam nas carroças os condenados que ao haverem fugido da prisão eram representados por efígies, isto significando que jamais seriam perdoados ou esquecidos". pg. 123) ou quando menciona Montaigne e a visita que o levou a escrever o ensaio Dos Canibais (pg. 36).

    As mulheres, praticamente sem voz, ocupam uma parte importante nesta saga, desde a mãe que se prostituía e que o abandonou ao nascer, Leocádia a jovem inacessível, por quem se apaixona em Sagres e que é o contraponto perfeito da sua mãe, e por fim Amélia, a quem começa por ajudar em Lisboa, mas que acaba por o proteger e com quem ficará até ao fim ("Seguiremos juntos. Mateus. Até ao fim." pg. 415) como se as relações perfeitas fossem as desprovidas - pelo menos de início - de sentimentos.

    Não tendo ficado deslumbrada com a leitura de Um dia chegarei a Sagres, há momentos de grande beleza na escrita de Nélida Piñon.   


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