O Avesso da Pele, Jefferson Tenório (Companhia das Letras)

     Criei o hábito de publicar a recensão de cada livro que leio, aqui e na Goodreads, onde também me é pedido que avalie o livro atribuindo estrelas. 5 estrelas é o máximo que podemos atribuir. Verifico que nos 133 livros que avaliei, nunca dei 5 estrelas. Provavelmente porque fui guardando este número máximo de estrelas para um livro que superasse as minhas expetativas, que fosse simultaneamente apaixonante e me confrontasse. Que contasse uma história, mas que a contasse de forma a me obrigar a mergulhar nela. Que quisesse ler depressa, impaciente para saber o que acontecia depois, mas também quisesse ler lentamente, para saborear cada palavra, cada frase, cada parágrafo, cada página. Que voltasse atrás para poder reler com calma e já sem avidez o capítulo anterior. E foi isto tudo que encontrei n' O Avesso da Pele e por isso irei atribuir-lhe 5 estrelas.

    Não sei se quer como definir este romance ou como descrevê-lo. Confrontado com a morte inesperada do pai, com cinquenta e dois anos, Pedro, o narrador, tenta, através dos objetos do pai, encontrá-lo, conhecê-lo:

    "Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar."

    Nessa procura vai até à infância e juventude dos pais e também dos avós. À relação complicada entre os pais, que se separaram quando Pedro ainda não tinha completado um ano de idade:

    "Você parecia um fugitivo. Você era um fugitivo. Era uma noite triste. Pois estava indo embora e não ia mais voltar. A partir dali, tudo o que aconteceu na vida de vocês resultou num repertório de mágoas. Numa separação ninguém vence, mas vocês não sabiam disso. (...) As brigas judiciais entre vocês duraram anos, entre pagamento de pensão e regulamentação de visitas."

   Mesmo o início da relação entre os pais tinha sido difícil:

    "A verdade é que não se amavam o suficiente para suportarem os seus fantasmas. Eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com os seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês achavam injusto que o amor não pudesse servir como amparo."

   O Avesso da Pele é um romance que percorre o presente e o passado, com camadas que se acumulam desordenadamente, numa tentativa de Pedro inventar ou recuperar o pai, que morreu, injustamente, inesperadamente, violentamente, devido à cor da sua pele. Não sendo um livro sobre o racismo, esta questão está presente em todas as páginas, como está na vida de Pedro, na vida dos seus pais e seus avós. A dada altura, enumera as abordagens policiais que o pai sofreu na vida. E é quase constrangedor lê-las e pensar na vulnerabilidade que a cor da pele implica e nas consequências que tem:

    "Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava."

    Depois dessa incursão pelo passado, Pedro chega ao presente, ao tempo próximo daquele no qual o pai morreu. E aí é o professor que o pai era que emerge. O pai a conseguir obter a atenção dos alunos, lendo excertos de Crime e Castigo e sonhando levar outro autores aos seus alunos, como Kafka, Cervantes, James Baldwin, Virginia Woolf e Toni Morrison , pouco antes da sua morte. 

    Jefferson Tenório não transforma o pai num herói, nem procura a verdade. Como refere, prefere uma verdade inventada.

   O Avesso da Pele é escrito como uma longa carta ao pai, lembrando-me, por isso, e pela coincidência da morte dos pais, ambas de forma violenta, o livro Somos o esquecimento que seremos, de Héctor Abad Faciolince, em que escreve:

    "É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler, e mesmo este livro não é mais do que uma carta a uma sombra."  

   E mais uma vez me surpreendo com os vários livros que encontro sobre a morte do pai, sem que haja também sobre a morte da mãe. Talvez o que explique esta diferença seja a maior proximidade com a mãe. Como diz Pedro: "Com minha mãe as coisas eram diferentes, porque enquanto eu tinha de lutar para me aproximar de você, eu tinha de lutar para me afastar dela."

   Um livro a não perder. Um autor a seguir.

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