Os Doentes do Doutor Garcia, Almudena Grandes (Porto Editora)

Os Doentes do Doutor García
   Tinha uma grande curiosidade de conhecer a obra desta Autora, Almudena Grandes. Penso que Os Doentes do Doutor García foi o último livro a ser traduzido e editado entre nós e, apesar de ser apresentado como um romance de espionagem, de que não sou grande fã, o facto de se passar durante a guerra civil espanhola e o franquismo, despertou-me a atenção.
    O livro está muito bem estruturado e, a par de romance de espionagem, é um livro de história do século XX. Conforme refere Almudena Grandes, na nota final que acompanha a publicação, trata-se de um «romance de ficção construído em torno de factos reais. Alguns dos fios que teceram a conjuntura histórica em que se apoia o meu relato são expostos nos pequenos textos não ficcionais intercalados ao longo destas páginas. Estes textos, narrados no presente histórico, descrevem acontecimentos rigorosamente verdadeiros, mas não mais do que outros factos e figuras que interagem com as minhas personagens inventadas nos capítulos de ficção.»
    O romance inicia-se nos primeiros tempos da guerra civil espanhola, numa altura em que ainda havia esperança na vitória dos republicanos, até à sua derrota. Seguimos depois para a frente de Leninegrado em plena II Guerra Mundial, passamos por um campo de concentração na Estónia e, nos últimos dias desta guerra, por Berlim. Quando a guerra acaba, regressamos a Espanha, onde há uma rede organizada que recebe nazis e os transporta para a Argentina ou outros países, onde iniciam novas vidas, com identidades forjadas. 
    Acompanhamos essencialmente dois homens, Manolo e o doutor Garcia. A vida deles é feita de derrotas, primeiro na guerra civil, depois na atividade que desenvolvem, infiltrando-se na rede clandestina organizada por Clara Stauffer para levar os criminosos de guerra para a Argentina, com o objetivo de os denunciarem. Saem também derrotados da esperança que vão mantendo, depois da vitória dos Aliados, de que a comunidade internacional ou a ONU condenem e consigam afastar Franco do poder. Esta esperança é partilhada por jovens espanhóis que não tendo participado na guerra civil, por ainda serem crianças, acreditam e arriscam a vida para alertar o mundo para a ditadura franquista, sem, contudo, o conseguirem. 
    É pela boca de Manolo que ouvimos o que sente quando é informado que nada será feito relativamente aos nazis que  passam por Espanha a caminho da Argentina, porque «o mundo mudou. O Estaline é o motivo...»:

    «Agora mimam os vossos inimigos, investem milhões de dólares em Itália, na Alemanha, na Áustria, transformaram-nos em países democráticos, devolveram-lhes a independência, a dignidade e o orgulho. Mas nós, espanhóis, não merecemos tanto, não merecemos nada, embora tenhamos sido os únicos a lutar contra o fascismo. Se calhar, foi esse o nosso pecado, termo-nos atrevido a ser antifascistas sem contar convosco, sem vos pedir licença, sem vos implorar ajudinhas providenciais, esses desembarques que não teriam valido a ponta de um corno se o Estaline não tivesse avançado pelo Leste. Como nos atrevemos a não vos dever nada, agora o amigo dos vossos inimigos é vosso amigo, e os inimigos do Franco são os vossos.» (pg. 624)

    Ou como refere a citação de Jaime Gil de Biedma, no início do livro, é a história de uma sucessão de falhanços ou desilusões:


«De todas as histórias da História

a mais triste é sem dúvida a de Espanha,

porque acaba mal.»

 

    Mas Os Doentes do Doutor Garcia não é apenas uma história de espionagem e de guerra, tem muitas pequenas histórias e personagens que se entrecruzam e que nos dão um retrato perfeito da época, até porque Almudena Grandes não se limita a nomeá-las e a descrevê-las. Fornece a respetiva biografia e as suas origens, as famílias e a terra de onde vieram. E ao longo deste longo romance, muitas destas personagens vão-se perdendo e reencontrando. Algumas passam tão efemeramente que até duvidamos que tenham alguma utilidade (como o pastor que encontra o cadáver a quem rouba o sobretudo) mas são como pequenas peças indispensáveis para a compreensão do que era a vida em Espanha, naquela época. 

    Quando comecei a ler este livro, senti alguma dificuldade devido ao número de personagens  e à mudança sistemática de nomes, de forma que no verso do marcador fui anotando os nomes e assinalando as respetivas correspondências. Só a meio do livro verifiquei que no final aparecem, organizadas por capítulos, as personagens e as diversas identidades com que são conhecidos.

   

   Uma palavra final para o tamanho deste livro: 750 páginas. À parte o peso, confesso que gosto mesmo de grandes livros como uns amigos assinalaram com este cartão. Prefiro estes livros grandes e pesados à sua partilha em volumes, pois por vezes acontece ler o primeiro volume e, ou porque não tenho o outro volume ou porque entretanto me apetece ler outro livro, interrompo a leitura e depois sinto-me incapaz de passar para o segundo volume, porque acho que já perdi o fio a meada.

    750 páginas cuja leitura vale mesmo a pena.


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